Guia de viagem pelo mundo dos livros

Um lago de trevas

Martin Urban cresceu num meio privilegiado. Oriundo de uma família de classe média alta, nunca teve que se preocupar com as questões prosaicas da sobrevivência diária. Trabalha na empresa do pai, reside num apartamento confortável e instalou-se comodamente numa existência banal, livre de desassossegos e preocupações. A sua paz é perturbada quando um amigo do passado, por quem nutre uma atração física intensa e recalcada, o desafia a jogar no totobola. O prémio inesperado desperta a sua veia altruísta e decide empregar o dinheiro na ajuda a pessoas carenciadas. Mas o distanciamento que sempre teve relativamente a qualquer carência económica traduz-se nalguma insensibilidade perante as verdadeiras necessidades e motivações daqueles que o rodeiam, tanto os contemplados como os excluídos. As reações são inesperadas e o desenlace será fatal.

Com «um lago de trevas», Ruth Rendell demonstra mais uma vez que a literatura policial não é necessariamente uma literatura de segunda categoria. O enredo é deliciosamente tortuoso. As personagens, amorais, sinuosas e desesperantes, caminham inconscientemente para o abismo, empurradas pelas suas próprias pulsões e necessidades, e o leitor, que conhece as motivações de cada uma, assiste impotente ao seu descalabro.

“Era uma rapariga simples, despreocupada, que não costumava desanimar por muito tempo. Tim relevara-lhe uma ocasião que uma das coisas que lhe agradavam nela consistia no facto de não ter moral nem a noção de culpa”.

Título: Um lago de trevas

Autor: Ruth Rendell

Editora: Edições 70

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Os cúmplices

Numa cidade pequena onde todos se conhecem, Lambert, um indivíduo respeitável, casado e dono de uma empresa de construção, tem uma relação extraconjugal com a secretária. Não será uma relação amorosa mas uma relação sexual, sedimentada apenas no desejo e não no conhecimento mútuo. Até aqui a história é banal, mas afasta-se do trivial quando o casal se envolve num ato sexual enquanto Lambert conduz, o que o leva a perder momentaneamente o controlo do carro. É o suficiente para invadir a faixa contrária, provocando o despiste de um autocarro que transporta perto de 50 crianças, que acaba por colidir com um muro e incendiar-se. No calor do momento, Lambert segue o seu primeiro instinto e continua o seu percurso como se nada fosse, não prestando qualquer auxílio aos sinistrados. Apenas uma criança sobrevive.

Nos dias seguintes a dimensão da tragédia domina a nação, atraindo à pequena terra jornalistas, investigadores, curiosos, toda uma multidão que se concentra no único propósito de discutir o acidente e de especular sobre quem o terá provocado. Lambert move-se entre os seus perseguidores, mantém os seus rituais diários, joga às cartas com os vizinhos, almoça com a esposa, discute pormenores laborais com os seus funcionários e clientes. Enquanto o cerco se fecha à sua volta vive numa situação de permanente transe, não devido ao sentimento de culpa mas por acreditar que a qualquer momento irá ser descoberto e detido. Toda a sua vida irá acabar, a sua liberdade, os seus bens, a sua posição no mundo. Na beira do precipício apercebe-se gradualmente da vacuidade da sua existência e desenvolve uma obsessão. O seu desejo pela secretária, agora sua cúmplice, domina-o. Esta criatura que permanece impávida e serena perante o acontecido, aparentemente alheia e indiferente a tudo e a todos, será certamente extraordinária, pelo que apenas ela o poderá compreender e libertar. Nela projeta todas as suas aspirações e frustrações, mas para alcançar o seu propósito terá que ultrapassar uma barreira que se revela intransponível, o que irá determinar o seu destino.

“Então, o universo afastava-se até se transformar numa espécie de nebulosa sem importância. Os objetos perdiam o peso, as pessoas não passavam de fantoches minúsculos ou grotescos, e tudo o que habitualmente era considerado de valor passava a ser uma coisa sem sentido. Subsistia apenas, num mundo encolhido, envolvente e cálido, benfazejo, a pulsação do sangue nas artérias, uma sinfonia de início vaga e difusa, que, pouco a pouco, se ia tornando mais precisa até, por fim, se concentrar no sexo”.

Título: Os cúmplices

Autor: Georges Simenon

Editora: Dom Quixote

Ano: 1989

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Wilt em parte incerta

Filho de um simpatizante nazi, Tom Sharpe, um dos expoentes máximos do humor britânico, utilizou os seus dotes literários em prole do combate ao racismo na África do Sul, país onde assistiu em primeira mão aos horrores da violência racial. O seu ativismo literário contra o apartheid valeu-lhe a prisão e a deportação para a sua Grã-Bretanha natal no início dos anos 60. Distante da contestação politica, em 1976 publica Wilt, novela humorística que introduz o seu personagem mais carismático, Henry Wilt, professor de literatura num colégio de artes e tecnologia que dá o nome a cinco novelas publicadas ao longo de quase 25 anos.

«Wilt em parte incerta» é a penúltima novela em que figura este personagem desafortunado e incompreendido que, como é hábito, se vê rodeado de indivíduos vulgares e desagradáveis que se envolvem nas tramas mais absurdas e disparatadas. A sua opressiva esposa parte para umas férias nos EUA com as filhas de ambos, as maquiavélicas e imparáveis quadrigémeas, deixando-o livre para cumprir o sonho antigo de divagar sem destino a pé pela Inglaterra profunda. Mas como tudo na vida de Wilt, o passeio vai ser tudo menos bucólico. As trapalhadas perseguem-no mesmo nos confins mais recônditos onde se pretende evadir, transfigurando esta novela numa paródia sem fim. Afinal, Tom Sharpe transformou o mau gosto numa forma de arte.

“Então, subitamente, o seu pé ficou preso na raiz de um abrolho e ele sentiu-se a cair de cabeça. Por um momento a sua mochila, presa num dos espinhos do abrolho, quase lhe amparou a queda. Mas Wilt continuou a cair, aterrou de cabeça na parte de trás da pick-up de Bert Addle e desmaiou. Era quinta-feira à noite”.

Título: Wilt em parte incerta

Autor: Tom Sharpe

Editora: Teorema

Ano: 2004

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O Rochedo de Tanios

Vencedor do Prémio Goncourt em 1993, «O Rochedo de Tanios» transporta-nos a uma fascinante e exótica viagem ao Líbano do século XIX, onde a história e a ficção se entrelaçam nas desventuras de um personagem singular, Tanios, que graças a um espírito inquieto e questionador se tornará um estranho entre os seus. As peripécias do destino, aliadas à sua tendência natural para recusar as convenções sociais, levam-no a procurar outros caminhos e a olhar de fora para a sua própria sociedade. A clarividência que este descentramento lhe proporciona traduz-se num bem sedimentado espírito de justiça e misericórdia, o antídoto mais eficaz contra o ciclo de violência e vingança que empesta a sua terra natal.

Mais do que tudo, «O Rochedo de Tanios» é uma obra bela que proporciona o mais puro e simples prazer da leitura. Amin Maalouf transporta-nos nas suas mágicas e subtis palavras a um mundo distante que afinal está tão próximo do nosso. Como Tanios, o leitor olha para dentro e descortina os fundamentos que se escondem nos interstícios do supérfluo.

“Felicidade passageira? Todas elas o são; quer durem uma semana ou trinta anos, choramos as mesmas lágrimas quando chega o último dia, e daríamos a alma para poder chegar até ao dia seguinte”.

Título: O Rochedo de Tanios

Autor: Amin Maalouf

Editora: Difel

Tanios

O Jogador

Aleksey Ivanovich trabalha como tutor para uma família endividada que coloca as suas derradeiras esperanças de salvação financeira na morte de uma tia rica que se recusa a morrer. Apaixonado por uma jovem da família, é desafiado por ela a jogar no casino, uma prova de abnegação amorosa que não consegue recusar. A partir dali, os dados do seu futuro estão lançados.

«O jogador» é um retrato violento sobre o vício. A vida das personagens move-se ao ritmo da sua compulsão para jogar, as suas responsabilidades, afetos e interesses são relegados para segundo plano, nada mais interessa para além do jogo que tem sempre precedência em todas as escolhas e decisões. Ali se fazem e perdem fortunas, ali se navega entre o desespero e a euforia, pois quem ganha hoje perde amanhã. Esta realidade transcende as personagens e contagia o próprio autor, ele próprio viciado no jogo e sob grande pressão para terminar a obra, sob pena de perder os seus direitos de autor.

“Parece-me que Polina, até hoje, me tem olhado como aquela imperatriz antiga que se despia na presença do escravo, pois não o considerava um ser humano”.

Título: O jogador

Autor: Fiodor Dostoievski

Editora: Presença

Ano: 2001

Jogador

Margarita e o Mestre

«Margarita e o Mestre» é um livro maravilhoso. A sua inteligente sátira é um veículo eficaz para a crítica social mas o seu alcance não se esgota aí, dado que explora os meandros mais profundos da existência humana, nomeadamente o clássico dualismo entre o bem e o mal. A obra teve uma génese atribulada, o primeiro manuscrito acabou destruído pelo próprio autor que veio a falecer em 1940, antes da sua plena finalização. Foram publicadas diversas versões com base nos manuscritos disponíveis, algumas depois de sujeitas à censura, o que deu origem a inúmeras versões. Independentemente destas peripécias, constitui uma sátira deliciosa de qualidade indiscutível que merece figurar entre os melhores romances do século XX.

A história é complexa sem ser impenetrável e o humor cáustico de Bulgakov torna a leitura extremamente agradável. Idealmente, o leitor deverá deixar-se surpreender pelo enredo, sem conhecer à priori demasiados detalhes da obra. Basta saber que a ação decorre em dois momentos: nos anos 30, Moscovo recebe a visita do Diabo e do seu séquito, uma trupe caricata que atormenta sem piedade os surpreendidos moscovitas, que não conseguem encaixar estas personagens inauditas no seu ateísmo feroz. Com uma precisão cirúrgica, atacam as fraquezas do espírito humano, a ganância, a avidez, a cobardia, o ceticismo, a soberba intelectual, deixando à sua passagem um rasto de incredulidade e assombro perante a constatação de que tudo é possível, mesmo o impensável. Paralelamente, num tom realista e desprovido dos laivos do humor, assistimos ao desenrolar do julgamento de Jesus por um Pôncio Pilatos atormentado por enxaquecas e dilemas morais, que não consegue fugir ao inevitável desfecho, a fatídica execução que determinou o futuro da humanidade.

“A vida de Berlioz sempre decorrera de tal modo que não o preparara para fenómenos extraordinários. Empalidecendo ainda mais, arregalou os olhos e pensou, perturbado: «Isto não pode ser!…». Mas, infelizmente, podia ser e era”.

Título: Margarita e o Mestre

Autor: Mikhail Bulgakov

Editora: Contexto

Ano: 1991

Margarita

O olhar dos inocentes

Os livros de Camilla Lackberg apresentam uma regularidade agradável. Em cada obra acompanhamos os pormenores da vida pessoal das personagens principais, demoramo-nos nas vicissitudes das relações familiares na sociedade sueca contemporânea, a educação dos filhos, a vida sentimental, a lida doméstica, o dia-a-dia do casal, a difícil gestão de situações de luto. A talentosa escritora Erika Falk e o seu marido, o inspetor Patrick Hedstrom, constituem o núcleo em torno do qual as restantes personagens se movem, irmãos, pais, colegas, amigos. De livro para livro tornam-se cada vez mais familiares, é agradável segui-los, acompanhar a sua história, conhecer o seu destino. A componente doméstica é apimentada pela investigação de crimes passionais, com raízes num passado mais ou menos distante, que exploram os meandros mais negros da mente humana e concedem um elemento de suspense e mistério à narrativa.

«O olhar dos inocentes» segue à risca esta fórmula. Uma família desapareceu misteriosamente há mais de 40 anos da sua casa na ilha de Valo, deixando para trás o seu elemento mais jovem, uma bebé encontrada sozinha na residência vazia. A policia investigou o caso mais foi incapaz de encontrar uma explicação para o sucedido, que ao longo dos anos acabou por se transformar numa lenda local. A criança, agora adulta, irá despoletar novos crimes quando regressa à residência familiar, que pretende recuperar e transformar num hotel. Erika aproveita a oportunidade para voltar a investigar um caso que sempre a intrigou, perante a apreensão do seu marido, habituado às interferências da mulher, que frequentemente se revelam produtivas, mas nem sempre isentas de riscos.

“Gratidão era o que exigia. Desistira de toda a esperança de receber amor”.

Título: O olhar dos inocentes

Autor: Camilla Lackberg

Editora: D. Quixote

Ano: 2015

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A balada da praia dos cães

José Cardoso Pires é um escritor excecional. Move-se no olimpo das palavras, no qual apenas os poucos eleitos são admitidos. Cada frase, capa parágrafo, cada capítulo de um livro seu tem valor intrínseco, pela sofisticação da forma, pela riqueza do conteúdo, por tudo o que consegue transmitir e pela forma como o faz. Dá gosto ler, reler, abrir em qualquer página ao acaso e saborear a leitura como um fim em si próprio, um exercício de pura estética.

«Balada da praia dos cães» tem este dom de nos transportar ao que de melhor a literatura tem para oferecer. A ação decorre no contexto claustrofóbico do Estado Novo. Relata a investigação do homicídio de um militar evadido da prisão, que estivera detido por tentativa de sedição militar. O seu cadáver, “em avançado estado de putrefação”, foi encontrado num “areal acidentado de pequenas dunas”. “Algumas peças do vestuário apresentavam-se rasgadas pelos cães”. Tem início a investigação, conduzida com minúcia pelo investigador Elias Santana, “com a reserva e sem paixão que competem à sua especialidade e tanto assim que jamais pronuncia a palavra Defunto, Finado ou Falecido a propósito do cadáver que lhe é confiado, preferindo trata-lo por De Cujus que sempre é um termo de meritíssimo juiz”. A reconstituição dos últimos dias do Major Luís Dantas Castro revela o contexto do seu confinamento, uma casa isolada onde se refugiou juntamente com três cúmplices profundamente oprimidos pela sua personalidade impositiva. No ambiente claustrofóbico do esconderijo, o major acaba por ocupar demasiado espaço, o que dita o seu fim.

Título: Balada da praia dos cães

Autor: José Cardoso Pires

Editora: D. Quixote

Ano: 1994

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O homem da areia

Lars Kepler é impróprio para cardíacos. Os livros desta dupla sueca têm o dom de elevar a adrenalina ao máximo, os acontecimentos sucedem-se a uma velocidade vertiginosa, as personagens caminham constantemente à beira do abismo, há sempre algo a acontecer que nos gela o sangue e nos leva a ler avidamente o capítulo seguinte. Foi assim nos três primeiros títulos da série, mas o quarto título, «O homem da areia», é sem dúvida o mais empolgante de todos, pois é aqui que o comissário Joona Linna finalmente defronta o seu implacável arqui-inimigo, o sinistro e excecionalmente inteligente serial killer Jurek Walter.

Uma das suas vítimas, um jovem desaparecido ainda na infância, que foi dado como morto há mais de uma década, acaba por aparecer a vaguear perto de uma linha de comboio, doente e subnutrido, sem ideia de onde esteve detido durante todo aquele tempo, mas com uma certeza: a sua irmã, com quem partilhou o cativeiro, está viva. Tem início uma corrida contra o tempo para a encontrar, o que vai obrigar o imaginativo comissário a tentar manipular o criminoso para o levar a revelar o paradeiro da sua vítima. Um jogo perigoso em que o caçador facilmente se transforma em presa, deitando tudo a perder.

“Cumpro a missão até onde for possível. Se morrer, não faz mal, pensa ela, com um súbito alívio”.

Título: O homem da areia

Autor: Lars Kepler

Editora: Porto Editora

Ano: 2014

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Um punhado de pó

Evelyn Waugh é mais conhecido entre nós como o autor de «Reviver o passado em Brideshead», mas os seus excecionais dotes literários não se ficam por aí. Controverso e sarcástico, conservador e católico, inimigo visceral do estado social e da classe trabalhadora, racista e anti-semita, profundamente elitista e jamais politicamente correto, visto por muitos como um insuportável snob misantropo, nunca deixou de recorrer à sua sátira feroz para criticar, expor e denunciar tiques, clichés e preconceitos sociais, aos quais ele próprio não era alheio. Deixou-nos uma obra extensa e variada, que inclui novelas, contos, biografias, literatura de viagens, ensaios e reportagens.

«Um punhado de pó», considerado por muitos como a sua obra-prima, é um livro belo sobre o egoísmo elevado ao seu máximo expoente. Na sua escrita elegante, Waugh descreve o declínio de uma relação conjugal que une duas personagens profundamente dispares. Lady Brenda é visceralmente egocêntrica e vive frustrada na sua relação com um homem bondoso, ingénuo, rotineiro e previsível. Encontra distração numa relação extraconjugal com um jovem desenxabido e desinteressante, que de alguma forma preenche a sua necessidade de aventura. Por ele, ou por si própria, esquece tudo, incluindo o próprio filho. O marido desprezado, sujeito aos mais cruéis atos de insensibilidade, privado da sua família, do seu lar e da sua posição no mundo, procura evasão numa longa viagem por paisagens exóticas, mas acaba por regressar ao ponto de partida. O egoísmo humano persegue-o, como uma fatalidade incontornável. É um livro perturbador, intenso e inesquecível, que nos leva a questionar os fundamentos da alma humana.

“Ela franziu as sobrancelhas, não acreditando imediatamente no que lhe contavam. – O John… o John Andrew… Eu… Ah, graças a Deus… . – Depois rebentou em lágrimas”.

Título: Um punhado de pó

Autor: Evelyn Waugh

Editora: Cotovia

Ano: 2008

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