Guia de viagem pelo mundo dos livros

O melhor homem para morrer

«O melhor homem para morrer» é o quarto título da série protagonizada pelo inspetor Wexford, uma série que reúne 24 títulos publicados entre 1964 e 2013. Ruth Rendell afasta-se do registo denso das suas obras mais emblemáticas e envereda por um policial tradicional, que coloca um detetive perspicaz mas banal na pista do assassino de um camionista arrogante, prepotente e exibicionista, morto na véspera do casamento do seu melhor amigo. Pelo meio surge a investigação de um acidente de carro que vitimou o condutor e uma misteriosa ocupante que ninguém consegue identificar, um enigma difícil de desvendar que acaba por captar a atenção do infatigável inspetor.

O enredo é engenhoso e a leitura agradável, mas não apresenta a análise psicológica aprofundada a que a autora nos habituou. É um registo diferente, mais leve e descomprometido, que mesmo assim não deixa de valer a pena.

“Charlie dissera isto ao mesmo tempo que abria a carteira com grande aparato, tendo o cuidado de proceder de forma que todos os clientes do bar vissem bem o seu conteúdo”.

Título: O melhor homem para morrer

Autora: Ruth Rendell

Editora: Gradiva

melhor homem

Ano: 1985

Giordano Bruno, o filósofo maldito

Giordano Bruno constitui um marco fundamental da civilização ocidental, não só pelas ideias que desenvolveu, mas igualmente pela forma como as defendeu. No final do século XVI, este sacerdote dominicano inteligentíssimo afastou-se do dogma religioso graças à sua indomável curiosidade intelectual. Dedicou-se a uma enorme diversidade de áreas do saber, desde a filosofia à astronomia, passando pela matemática e pelo estudo da memória. Recusava a ideia ortodoxa da Trindade, defendia a infinitude do universo e renunciava à teoria geocêntrica, ideias profundamente perniciosas aos olhos da inquisição, que tudo fez para capturar, julgar e castigar severamente este livre pensador que ousou desafiar os pressupostos que sustentavam o edifício ideológico da Igreja.

Acima de tudo, abominava a ignorância, combustível para a intolerância e a violência. Acreditava que o conhecimento constituiria uma via para a concórdia entre católicos e protestantes, um veículo para a paz e para um mundo melhor. Com este ideal em mente, procurou aproximar-se de figuras-chave da sua época, tendo por objetivo último influenciar o Papa Clemente VIII, propósito que nunca chegou a concretizar. No seu entusiasmo intelectual terá subestimado a persistência feroz da Inquisição, que mediante artimanhas e falsidades o capturou e confinou durante 7 longos anos de privação e tortura. No final deste martírio, reservou-lhe o fim cruel que estava destinado a todos os que a desafiavam: a morte na fogueira. Michael White recupera a vida e obra deste intelectual fascinante, demorando-se sobre o seu julgamento. Neste exigente exercício de reconstituição histórica, recorre a escassos e dispersos documentos do Vaticano. Muito se terá perdido nos confins da história, sem deixar qualquer rasto documental que permita recuperar o sucedido. Mesmo assim, é possível reconstituir com alguma coerência a luta deste homem pela sua noção de verdade, uma luta que a Inquisição não conseguiu apagar da história, apesar dos seus impiedosos esforços.

“Desejo que o mundo usufrua dos gloriosos frutos do meu trabalho, desejo despertar a alma e abrir o espírito dos que vivem privados dessa luz que, seguramente, não é invenção minha. Se estiver errado, não creio que o faça deliberadamente. E, ao falar e escrever deste modo, não sou impelido pelo desejo de sair vitorioso, pois que reconheço qualquer tipo de fama e conquista como inimigos de Deus, vis e sem qualquer honra, se não forem verdadeiras; mas por amor à sabedoria autêntica e num esforço para reflectir com justeza, fatigo-me, sofro, atormento-me”.                                         Giordano Bruno

Título: Giordano Bruno, o filósofo maldito

Autor: Michael White

Editora: Planeta

Ano: 2008

bruno

A vidente

Alexander e Alexandra Ahndoril, a dupla sueca que escreve sob o pseudónimo Lars Kepler, tem um estilo muito peculiar. Os livros são extensos mas os parágrafos, repletos de ação e suspense, são pequenos e leem-se compulsivamente. Em menos de nada o livro já acabou e só nos resta comprar o volume seguinte, o mais rapidamente possível, pois qualquer amante deste tipo de leitura ficará certamente viciado ao fim de poucas páginas. Infelizmente, ainda só estão disponíveis quatro títulos da série que acompanha as investigações de Joona Linna, o comissário finlandês de olhos cinzentos como um céu tempestuoso, atormentado por um sinistro assassino em série ao estilo Hannibal Lector.

«A vidente», terceiro título da série, segue a investigação da morte violenta de uma jovem institucionalizada num centro de acolhimento para menores. As pistas levam a polícia a acreditar na culpabilidade de outra interna, que se encontra a monte levando consigo como refém um rapazinho de 4 anos. Mas as provas que parecem inequívocas são questionadas por uma suposta vidente, uma pequena vigarista que para sua própria surpresa tem visões espontâneas e incontroláveis relacionadas com o crime.

“Aproxima-se da cama. Um arrepio gelado sobe-lhe à nuca quando afasta o cobertor. O lençol está cheio de sangue já seco. Mas a pessoa que ali se deitou não estava ferida”.

Título: A vidente

Autor: Lars Kepler

Editora: Porto Editora

vidente

Ano: 2013

O menino de Cabul

«O menino de Cabul» é um livro intenso, profundo, comovente e apaixonante sobre a infância no Afeganistão dos anos 70, antes da guerra com a União Soviética ter vitimado muitos dos seus habitantes, condenando outros tantos ao exílio. É uma sociedade profundamente tradicionalista e hierarquizada, onde a inocência da juventude se depara constantemente com desafios que ameaçam corrompê-la. Mas mesmo neste clima adverso os sonhos simples de todos os meninos sobrevivem. Amir, de 12 anos, sonha impressionar o pai ao vencer um torneio de luta de papagaios, e para tal conta com a ajuda do seu corajoso amigo Hassan, um jovem de casta inferior cujas qualidades evidentes não permitem ultrapassar a ostracização social de que é alvo.

Este amigo fiel acaba por ser vítima de um acontecimento violento, a que Amir assiste inadvertidamente sem intervir. A culpa pela sua passividade perante o ataque ao amigo que sempre o defendeu irá acompanhá-lo ao longo dos anos, na sua fuga para os Estados Unidos com o pai e na sua vida no seu novo país. Já na idade adulta, surge a oportunidade de se redimir pelo erro do passado. Regressa então ao Afeganistão devastado pela guerra, em busca do filho perdido de Hassan, que irá finalmente beneficiar do ato de bondade que havia sido negado ao seu progenitor.

“For you, a thousand times over.”

Nome: O menino de Cabul

Autor: Khaled Housseini

Editora: Bloomsbury

Ano: 2004

Edição portuguesa: Editorial Presença

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V de Vingança

Num mundo futuro imaginário, um regime fascista totalitário é desafiado por um misterioso indivíduo que de forma simbólica e ritualística vai assassinando membros respeitados daquela sociedade controladora. Esta figura estranha de proveniência desconhecida esconde-se por detrás de uma máscara de Guy Fawkes, militar católico que tomou parte na «conspiração da pólvora», a qual visava assassinar o rei protestante Jaime I e os membros do parlamento no início do século XVII. A utilização desta simbologia no livro, conotada com a rebelião contra o despotismo dos poderes instituídos, terá inspirado a sua utilização por grupos contestatários como os Anonymous ou os Ocupas.

Na realidade, esta distopia foi inspirada no governo conservador de Margaret Thatcher. No início dos anos 80, a intransigente primeira-ministra foi alvo de forte contestação ao impor severos cortes sociais num contexto de crescimento do desemprego e aumento da taxa de pobreza. Alan Moore, conceituado escritor britânico de inspiração anarquista, critica nesta obra o autoritarismo desta complexa e por vezes contraditória governante, que por meios conservadores procurou alcançar resultados libertários.

Título: V de Vingança

Autor: Alan Moore e David Lloyd

Editora: Vertigo

V

Mortalha para uma enfermeira

P. D. James é, sem dúvida, merecedora do título de Rainha do Crime e «Mortalha para uma enfermeira» é mais uma sólida prova do seu enorme talento. O leitor é transportado a um hospital inglês nos finais dos anos 60, retratado minuciosamente em todos os seus ínfimos pormenores – as rotinas, os tratamentos, os ambientes, as hierarquias. O realismo da descrição permite sentir o cheiro a desinfetante no ar, ouvir os lamentos dos pacientes e estremecer com as correntes de ar que circulam furtivamente por amplas divisões concebidas para outros fins. As personagens movem-se nesta antiga residência senhorial convertida em escola de enfermagem, os seus caracteres são dissecados e as suas motivações expostas perante o leitor que tenta adivinhar o seu possível envolvimento no homicídio de duas estudantes.

O médico misógino e narcisista, a enfermeira lésbica e reprimida, a superintendente inteligente e discreta, a chefe de enfermagem intransigente e dedicada, e um grupo heterogéneo de estudantes que incluem uma amostragem coerente dos principais traços da personalidade humana. O inspetor Dalgliesh interroga, observa e investiga num meio que não é o seu e que frequentemente se revela hostil às suas inquirições, mas a sua persistência irá permitir desvendar um mistério improvável e surpreendente.

“Dalgliesh pensou que ele tinha a presunção, a patina da vulgaridade e o savoir-faire levemente grosseiro que associava a um determinado tipo de homem bem-sucedido”.

Título: Mortalha para uma enfermeira

Autor: P. D. James

Editora: Publicações Europa-América

enfermeira

Coração das Trevas

Entre 1885 e 1908, o rei Leopoldo II da Bélgica controlou, a título privado, o denominado Estado Independente do Congo, uma situação sancionada internacionalmente graças a uma aparente filantropia. A suposta missão civilizadora e humanitária do rei encobria a exploração das matérias primas do território e as atrocidades cometidas sobre as populações indígenas, sujeitas a um regime cruel de trabalho forçado. Quando as cotas de borracha não eram atingidas, os trabalhadores nativos sofriam uma punição terrível: eram executados e as suas mãos cortadas como prova da sua morte, ou em alternativa decepavam as mãos das suas esposas e filhos, de tal forma que a recolha de mãos se terá transformado num fim em si próprio, justificando todos os excessos e barbaridades. Cerca de metade da população terá perecido durante este terrível período.

Joseph Conrad trabalhou naquele território enquanto capitão de um barco a vapor que navegava o rio Congo, onde assistiu em primeira mão a esta crueldade desmedida. A sua censura desta situação repugnante surgiu na forma de uma das obras maiores da literatura, «Coração das Trevas», uma pequena grande narrativa, escrita de forma sublime. A história companha a viagem do narrador, Marlow, capitão de um barco que sobe o rio em direção a uma estação de recolha de borracha. Ali reside uma figura carismática, Kurtz, um respeitado e bem-sucedido agente que reúne mais borracha do que os seus congéneres. Esta personagem idealizada de quem toda a gente fala com admiração acaba por fascinar Marlow, que aguarda com expectativa pelo seu encontro com um homem supostamente culto e civilizado que labora nos confins da selvajaria, mantendo a sua integridade e sanidade mental intactas. No entanto, quando finalmente o encontra, depara-se com a personificação de toda a violenta maldade contida no imperialismo elevado ao seu expoente máximo. «O horror, o horror».

NOTA: o extraordinário filme «Apocalipse Now» é inspirado no «Coração das Trevas», transpondo a ação para o contexto da Guerra do Vietname.

“You remember I told you I had been struck at the distance by certain attempts at ornamentation, rather remarkable in the ruinous aspect of the place. Now I had suddenly a nearer view, and its first result was to make me throw my head back as if before a blow. Then I went carefully from post to post with my glass, and I saw my mistake. These round knobs were not ornamental but symbolic; they were expressive and puzzling, striking and disturbing – food for thought and also for the vultures if there had been any looking down from the sky; but at all events for such ants as were industrious enough to ascend the pole”.

Título: Coração das Trevas

Autor: Joseph Conrad

Editora: Wordsworth

Ano: 1999

Edição portuguesa: Editorial Estampa

coração trevas

Se isto é um homem

Não será um exagero considerar «Se isto é um homem» um dos melhores livros jamais escritos. É um relato dolorosamente lúcido do holocausto que permite descortinar a essência do carácter humano, frequentemente oculto por uma máscara de convenções sociais. Em Auschwitz, Primo Levi deparou-se com homens de várias proveniências, classes sociais, profissões, países e línguas. Desprovidos de qualquer direito ou bem pessoal, descaracterizados e humilhados, sujeitos a condições infra-humanas que os colocavam no limite da sobrevivência, reduzidos a uma rotina de sofrimento constante. É uma situação extrema, quase laboratorial, em que o homem sem nome nem direitos assume o papel do rato de laboratório. Porque na realidade já não é uma pessoa, é um objeto descartável que não deixa rasto na memória de ninguém.

Ali se revela o que é inato e adquirido, o que é essencial e supérfluo. Ali se vislumbram as caraterísticas essenciais que distinguem quem sucumbe de quem sobrevive. Ali se compreende que ninguém pode verdadeiramente sobreviver àquele trágico acontecimento enquanto ser humano de pleno direito. A sua humanidade ficou para sempre maculada.

“As personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade está sepultada, ou eles mesmos a sepultaram, debaixo da ofensa que sofreram ou que infligiram a outrem. Os SS maus e estúpidos, os kapos, os políticos, os criminosos, os proeminentes grandes e pequenos, até aos halftlinge indiferenciados e escravos, todos os degraus da insana hierarquia criada pelos Alemães, estão paradoxalmente unidos numa única desolação interior”.

Título: Se isto é um homem

Autor: Primo Levi

Editora: Editorial Teorema

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Pensa num número

Um inspetor reformado regressa relutantemente ao trabalho a pedido de um antigo colega de faculdade que está perturbado com as mensagens ameaçadoras que tem recebido de um desconhecido, que parece adivinhar os seus pensamentos. Diz-lhe que pense num número e consegue adivinhá-lo de forma inexplicável, dando a entender que conhece os seus pensamentos mais profundos, mesmo os inconscientes. Este é apenas o primeiro de vários enigmas sem explicação aparente que deixam a polícia desconcertada na caça a um genial assassino que parece estar sempre um passo à frente dos seus perseguidores.

Os apreciadores de um bom policial tradicional não vão ficar desiludidos com «Pensa num número», onde encontram uma história bem escrita que encaixa perfeitamente no paradigma deste tipo de literatura. Aqui não falta o incontornável serial killer maquiavélico, que como não poderia deixar de ser se confronta com o inevitável inspetor desiludido em busca de redenção, dando origem a um imaginativo jogo do gato e do rato que só se resolve no apoteótico momento final, após longas páginas de um suspense aflitivo.

“Se alguém te pedisse que pensasses num número, eu sei em que número pensarias. Não acreditas? Vou provar-to. Pensa num número qualquer até mil, o primeiro número que te vier à cabeça. Imagina-o. Repara agora como eu conheço bem os teus segredos. Abre o pequeno envelope”.

Título: Pensa num número

Autor: John Verdon

Editora: Porto Editora

Ano: 2014

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O último espião

«O último espião» relata o assassinato de Alexander Litvinenko, ex-agente do KGB envenenado em 2006 com um agente radioativo introduzido numa bebida, num espaço público em Londres. A forma cruel como o crime foi cometido é chocante, já que implicou a utilização de uma substancia que condenou a vítima a um longo sofrimento, para além de ter representado um risco para qualquer pessoa que tenha entrado em contacto com o isótopo radioativo, desde os assassinos até aos passageiros que terão viajado com eles no mesmo avião ou que frequentaram o prestigiado hotel em que se deu o envenenamento. Outro aspeto surpreendente deste crime é a audácia de o levar a cabo num país estrangeiro, à vista de todos, com risco para os próprios cidadãos desse país.

Os supostos mentores do crime, apontados pelo autor, aquartelam-se no governo russo. São os «siloviki», ex-agentes dos «Ministérios da força», agências de informação e espionagem da antiga União Soviética e atual Rússia, nos quais o próprio Vladimir Putin se inclui. São homens que fizeram carreira em instituições totalitárias dentro de um regime totalitário, num totalitarismo ao quadrado difícil de compreender no contexto democrático. Movem-se num mundo aparte, com regras próprias e hierarquias bem definidas, ainda que nem sempre formalmente estabelecidas. A honra, a lealdade, o silêncio, a disciplina e a obediência, são os valores primordiais que os guiam. A traição não é tolerada e a punição é garantida.

“Mas a questão mais complicada era se a era de Putin, com as suas raízes no KGB, teria produzido uma cultura na Rússia que tornava estas mortes não só plausíveis como prováveis”.

Título: O último espião

Autor: Alan Cowell

Editora: Dom Quixote

Ano: 2010

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