Guia de viagem pelo mundo dos livros

A princesa de gelo

Camilla Lackberg inclui-se no extenso manancial de escritores de policiais escandinavos, um género que deve muito da sua popularidade à célebre trilogia de Stieg Larson. Distante do ambiente cosmopolita e tecnológico de «Millennium», a ação dos seus livros decorre numa pitoresca cidadezinha costeira com pouco mais de 800 habitantes, Fjällbacka, uma pequena localidade turística onde todos se conhecem e tudo se sabe, para o bem e para o mal. Este bucólico mas ligeiramente claustrofóbico cenário ganha vida própria e constitui ele próprio uma personagem fundamental desta série que conta já com 8 títulos. Cada livro relata um ou vários crimes relacionados entre si que são investigados por um detetive da esquadra local com a colaboração informal da sua parceira, uma escritora de sucesso. Apesar das histórias criminais serem independentes, convém ler os livros por ordem, dado que as personagens principais se mantém e a sua vida pessoal vai sofrendo alterações significativas.

«A princesa de gelo» inaugura a série com a escritora Erica Falk a regressar à sua terra natal, onde irá investigar a misteriosa morte de uma amiga dos seus tempos de infância, um aparente suicídio que se revela algo mais. No decurso das suas pesquisas reencontra outro rosto do passado, Patrik Hedstrom, detetive responsável pelo caso. Os dois unem esforços e descobrem afinidades que antes haviam passado despercebidas.

“Olhou para as mãos. Como odiava as suas mãos. Transportavam a beleza, mas também a morte – uma dualidade incompatível com a qual aprendera a viver”.

Título: A princesa de gelo

Autor: Camilla Lackberg

Editora: Dom Quixote

Ano: 2011

gelo

O código dos Wooster

G. Wodehouse é um mestre do humor britânico. Refinado e profundamente inteligente, uma das suas mais carismáticas personagens é o mordomo Jeeves, “a gentleman’s personal gentleman”, que figura em mais de 40 novelas e contos publicados entre 1915 e 1974. Fleumático e perspicaz, resolve discretamente todas as embrulhadas criadas pelo seu amo Bertie Wooster, um cavalheiro inglês pouco arguto e com uma assinalável propensão para o desastre.

«O código dos Wooster» é a terceira novela em que figuram estas singulares personagens. Numa mansão senhorial inglesa reúne um grupo de figuras inesquecíveis que se envolvem em intrincadas peripécias pelos motivos mais inacreditáveis. Uma tia autoritária disposta a tudo para recuperar uma nateira em forma de vaca, um amigo disparatado que cria salamandras na banheira e corre o risco de perder a sua noiva, uma jovem inconsequente e estouvada que quer à força casar com o pároco. Cada trama se enreda nas restantes, resultando numa embrulhada deliciosa de equívocos.

«- Se não arranjas uma saída, parece-me que isto será o fim. É claro que ainda não tiveste tempo de assimilar bem o assunto. Enquanto janto, analisa-o mais uma vez de todos os ângulos. É possível que tenhas uma inspiração. As inspirações surgem de repente e quando menos se espera, não surgem? De jato, quero dizer.

– Sim, senhor. Dizem que o matemático Arquimedes descobriu o princípio da impulsão, certa manhã, quando estava no banho.

– Pois aí tens. E não me parece que ele fosse qualquer coisa de especial comparado contigo.

– Era um homem excecional, creio. Tem-se lamentado imenso que ele haja sido assassinado posteriormente por um soldado.

– Que pena. Mas, enfim, a carne é pó… não é assim que se diz?

– Sim senhor.»

Título: O código dos Wooster

Autor: P. G. Wodehouse

Editora: Livros da Raposa

Ano: 2007

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A feira das vaidades

«A feira das vaidades» é uma obra-prima da literatura vitoriana cuja ação decorre no contexto das guerras napoleónicas. Acompanha o percurso de duas mulheres aparentemente antagónicas, tanto ao nível do carácter como da posição social, que pela força das circunstâncias se associam numa amizade improvável e conturbada. Uma é aflitivamente ingénua, crédula e passiva, a outra arrivista, inteligente e determinada. Os atributos de cada uma são de tal maneira profundos e contraditórios que é fácil incluí-las entre as mais significativas personagens femininas de toda a literatura. Não serão, contudo, heroínas tradicionais, na medida em que estão longe da perfeição. Thackeray atribui-lhes a sua perceção desencantada da humanidade, com as suas vaidades, egoísmos e superficialidades.

São personagens ambíguas. Na sua busca pela felicidade fazem sofrer, consciente ou inadvertidamente, aqueles que delas se aproximam, por afeição ou interesse. E elas sofrem também, e com o sofrimento crescem, num processo de amadurecimento tão real que poderia ser o nosso.

“And in determining to make everybody else happy, she found herself so”.

Título: Feira das vaidades

Autor: William Makepeace Thackeray

Editora: Penguin

Ano: 1987

Edição portuguesa: Publicações Europa-América

vaidades

As aranhas douradas

Rex Stout é uma referência fundamental da literatura policial. Foi nomeado o melhor escritor de mistério do século XX e o seu mítico detetive Nero Wolfe recebeu o título de melhor série de mistério pela Boucheron 2000, a maior convenção mundial do género.

«As aranhas douradas», publicado em 1934, acompanha o caso do rapto de uma mulher que usava brincos em forma de aranha. É um dos primeiros títulos de mais de 70 obras em que figura este obeso e peculiar detetive, que investiga sem sair de sua casa, onde se dedica ao seu viveiro de orquídeas e às refinadas iguarias cozinhadas por Fritz, o seu talentoso chef suíço. É um homem de gostos requintados que evita a todo o custo sair da sua zona de conforto. Dali coordena a investigação e convoca os intervenientes para interrogatórios implacáveis, os quais mesmo contrariados não deixam de comparecer ao encontro com o conceituado e persistente anfitrião, que nunca abdica dos seus intentos. O trabalho braçal é delegado no hábil e leal assistente Archie Goodwin, que assume o papel de narrador e nos fornece relatos espirituosos e irónicos de cada investigação. São pequenos livros viciantes que apetece ler compulsivamente.

“Sabe, Mrs. Horan, eu estive no gabinete durante todo o tempo em que Mrs. Fromm e Mr. Wolfe conversaram um com o outro e recordo-me de todas as palavras que disseram. Foi por isso que pensei que a senhora talvez tivesse muita curiosidade a esse respeito, e não me surpreende que assim seja. O problema está em que não posso satisfazer a sua curiosidade gratuitamente. Devia ter-lhe explicado que não estou aqui em representação de Nero Wolfe, e foi por esse motivo que disse que a conversa é particular. Estou a representar-me a mim mesmo. Satisfarei a sua curiosidade se me emprestar cinco mil dólares, a serem pagos no dia em que chover de baixo para cima, em vez de cima para baixo”.

Título: As aranhas douradas

Autor: Rex Stout

Editora: Visão

Ano: 2000

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O Terceiro Homem

«O terceiro homem» é uma obra que tem uma génese curiosa. Graham Greene escreveu esta novela com o propósito de a utilizar como base para o argumento de um filme que se veio a tornar uma referência da história do cinema. Dirigido por Carol Reed e com Orson Wells num dos principais papeis, esta obra-prima do filme negro foi recentemente restaurada e vai regressar este mês às salas de cinema.

Retrata o universo do mercado negro na Viena dividida e arruinada do pós Segunda Guerra Mundial, onde um escritor falhado e ingénuo vai reencontrar um amigo de infância, personagem implacável na prossecução dos seus fins, que não se detém perante dilemas morais ou afetivos. A genialidade da história reside na forma como esta personagem se adivinha sem se ver e consegue marcar presença sem estar fisicamente presente. É apresentada enquanto um pressentimento constante que dirige todo o enredo, como um maestro invisível. É ela quem determina o curso da narrativa, é à sua volta que as restantes personagens se movem, é por sua causa que se encontram e desencontram. Numa das cenas mais memoráveis de sempre acaba por finalmente fazer a sua aparição e desvendar a verdade do seu caráter, numa apoteose magnificamente conseguida. É do melhor que se pode encontrar no cinema e na literatura.

“Pela primeira vez, Rollo Martins relembrou o passado sem saudades nem admiração, dizendo de si para consigo: «Ele nunca chegou a ser completamente adulto». Os demónios de Marlow usavam petardos amarrados à cauda; o mal é como Peter Pan – possui o horripilante privilégio da juventude eterna”.

Título: O Terceiro Homem

Autor: Graham Greene

Editora: Livros do Brasil

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A sangue frio

«A sangue frio» relata um crime verídico ocorrido no final da década de 50 nos EUA: um casal e os seus filhos, pessoas respeitadas na comunidade, foram brutalmente assassinados na sua casa durante um assalto. Truman Capote investigou o caso em profundidade com base em observação direta, relatos oficiais e entrevistas a residentes, investigadores e aos próprios criminosos. Para além de descrever pormenorizadamente as personagens envolvidas e o contexto em que se desenrolou o crime, Capote desvenda as complexas motivações psicológicas subjacentes a um ato totalmente desnecessário e desproporcionado, cometido por uma dupla de assaltantes que, embora tivessem já um passado de criminalidade, nunca haviam praticado um ato de tal violência.

Apesar de persistir alguma polémica quanto à veracidade de alguns elementos do livro, não deixa de ser um trabalho de reportagem muito interessante que revela uma intensa pesquisa e explora eficazmente as personalidades dos criminosos, um dos quais vem a revelar uma sensibilidade surpreendente e aparentemente incompatível com a brutalidade dos seus atos.

“- Sabes o que estou a pensar? – disse Perry. – Acho que devemos ter qualquer anormalidade, nós os dois, para fazermos aquilo que fizemos.

– O que queres dizer?

– O que fizemos lá…”

sangue frio

Título: A sangue frio

Autor: Truman Capote

Editora: Círculo de Leitores

Eichmann em Jerusalém – reportagem sobre a banalidade do mal

No início dos anos 60, o criminoso de guerra nazi Adolf Eichmann foi julgado em Israel e condenado à morte por enforcamento. Hanna Arendt, filósofa política de origem judaica, assistiu ao julgamento e elaborou uma série de artigos para o «The New Yorker» que resultaram nesta obra.

Se há livro cuja leitura devesse ser obrigatória, é este. É uma reflexão muito séria, porventura a mais lúcida jamais escrita, sobre a maior tragédia da história da humanidade, o holocausto. Explica racionalmente os fatores que estiveram na sua origem e chega a uma descoberta que tem tanto de surpreendente como de inquietante. Os holocaustos deste mundo, qualquer que seja a sua escala, não são fruto das ações de psicopatas, mas sim de pessoas consideradas normais, que quando colocadas no contexto de um sistema social doentio se demitem de exercer a sua responsabilidade pessoal para a delegarem na figura de autoridade que lhes ordena que destruam os seus semelhantes.

“Para desgraça sua, ninguém acreditou nele. O procurador não acreditou, porque essa não era a sua função. O advogado de defesa não lhe prestou atenção porque, ao contrário de Eichmann, não parecia ter o mínimo interesse por problemas de consciência. E os juízes não acreditaram porque eram demasiado bondosos e talvez também demasiado conscientes daquilo que eram os fundamentos essenciais da profissão que exerciam para admitirem que uma pessoa vulgar, “normal”, nem fraca de espírito, nem doutrinada, nem cínica, pudesse ser totalmente incapaz de distinguir o bem do mal. Preferiram concluir a partir de algumas mentiras esporádicas, que o réu era um mentiroso. E assim escapou-lhes o maior desafio moral e, porventura, jurídico de todo este processo. O entendimento dos juízes assentava na suposição de que o réu, como qualquer pessoa “normal”, teria, forçosamente, tido consciência da natureza criminosa dos seus atos. Eichmann era de facto, normal, no sentido em que não era uma “exceção no seio do regime nazi”. Contudo dada a especificidade do terceiro Reich só as “exceções” poderiam reagir “normalmente”. Esta simples verdade criava aos juízes um dilema que não podiam nem resolver nem ignorar”.

Eichmann

Título: Eichmann em Jerusalém – reportagem sobre a banalidade do mal

Autor: Hannah Arendt

Editora: Tenacitas

Ano: 2003

Roma e Império

É possível caraterizar esta longa obra em duas partes com uma pequena frase: o melhor dos romances históricos para o leitor exigente que aprecia o género. Com as suas duas obras «Roma» e «Império», a segunda a sequela da primeira, Steven Saylor embarca num ambicioso relato da história de Roma antiga desde os seus mitos fundadores até aos tempos áureos do império. As fontes históricas para este período tão importante da nossa civilização nem sempre estão disponíveis de forma satisfatória, seja em quantidade seja em qualidade, pelo que a imaginação do autor cobre as falhas de forma coerente e eficaz, sem deixar pontas soltas.

Apesar da sua grande dimensão (cada livro ultrapassa as 600 páginas), a leitura é fácil e fluida, pois a escrita é bastante acessível e despretensiosa, e a narrativa está repleta de acontecimentos emocionantes que cativam o leitor. É uma forma muito agradável de ficar a conhecer melhor um período histórico tão importante, que aqui nos é revelado na perspetiva das diversas gerações de uma família romana proeminente, que convive com imperadores, generais, senadores, filósofos e outras figuras determinantes para a génese da civilização ocidental.

“A própria Cleópatra não tinha mais de vinte e cinco anos. Parecia mais velha na estátua que se encontrava no templo, pensou Lúcio; e com as vestes reais que usava no dia em que ele a conhecera também. Neste dia, envergava um vestido simples, de linho, em mangas, preso na cintura com uma faixa debruada a ouro. O cabelo, que costumava usar preso no alto da cabeça, caía-lhe hoje sobre os ombros, contornando-lhe a face. Não trazia o diadema: Ainda era cedo, e a rainha ainda não se tinha ataviado para receber visitas formais”.

Roma

Império

Título: Roma e Império

Autor: Steven Saylor

Editora: Bertrand

Ano: 2008 e 2011

Sentença em Pedra

Obra emblemática de uma grande senhora do crime, «Sentença em Pedra» é um triller psicológico genial que se lê compulsivamente da primeira à última página, apesar de Ruth Rendell revelar o desfecho logo no início da obra: uma família vai ser assassinada pela sua governanta. Contrariamente ao que sucede com o policial tradicional, não é a curiosidade sobre o final que prende o leitor, mas sim a forma como os acontecimentos se sucedem até àquele momento fatídico.

A família é feliz, aparentemente perfeita. Viveu sempre num mundo benevolente, isento de maldade. Todos os seus elementos são ricos, cultos, bonitos, bem integrados na comunidade onde os vizinhos os respeitam. Ironicamente, é essa inocência complacente que vai ditar a sua morte. Quando confrontados com a maldade, não a reconhecem. Confundem o isolamento da nova governanta com timidez, a sua frieza com reserva, a sua compulsividade com dedicação. E assim trazem uma psicopata para o seu seio, provocam-na com a sua boa-vontade inconsciente, despertam o monstro que se alberga naquele coração de pedra. Quando a inquietação finalmente surge, já é tarde de mais.

“Não houve piedade que a movesse, nem remorso. Não pensou em amor, alegria, paz, descanso, esperança, vida, pó, cinzas, desperdício, necessidade, ruína, loucura e morte, que tinha assassinado o amor e uma vida feliz, arruinado a esperança, desperdiçado força intelectual, acabado com a alegria, porque ela mal sabia o que estas coisas são. Não viu que tinha deixado cadáveres gritando por sepultura. Pensou que era uma pena aquela carpete tão bonita ter ficado naquela porcaria e ficou contente por nenhuma gota de sangue lhe ter tocado”.

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Título: Sentença em Pedra

Autor: Ruth Rendell

Editora: Gradiva

As noites das mil e uma noites

Naguib Mahfuz, prémio nobel da literatura em 1988 e um dos melhores escritores árabes do século XX, propõe uma sequela das incontornáveis «Mil e Uma Noites» numa obra que ele próprio considera do mais importante que escreveu em toda a sua vida. A história é aparentemente simples. Depois de ouvir as histórias de Xerazade, o Sultão dá-se por vencido e casa-se com ela. No entanto, este gesto inesperado não representa uma mudança genuína na sua forma de ser, que se mantém inclemente e desprovida de empatia. Coloca-se então a questão de saber como ressuscitar a humanidade nesta alma intransigente e cruel.

Mahfuz propõe uma sábia solução. Transporta-nos a um mundo alegórico e fantástico onde o ser humano se despe de todos os artifícios e contempla a sua alma nua. É aqui que a verdadeira transformação se torna possível, a transformação que apenas um bom contador de histórias pode proporcionar àqueles que o escutam com uma mente aberta.

“Uma prova do receio da verdade é que não facilita a ninguém um caminho até ela nem priva ninguém da esperança de a alcançar. Deixa as pessoas a cavalgarem pelos desertos da perplexidade e a afogarem-se nos mares da dúvida. Quem acredita que a alcançou é porque se separou dela, e quem acredita que se separou dela foi porque perdeu o seu caminho. Não se pode chegar a ela sem fugir dela, é ineludível”.

Noites

Título: As noites das mil e uma noites

Autor: Naguib Mahfuz

Editora: Difel

Ano: 1998