Categoria - romance

Margarita e o Mestre

«Margarita e o Mestre» é um livro maravilhoso. A sua inteligente sátira é um veículo eficaz para a crítica social mas o seu alcance não se esgota aí, dado que explora os meandros mais profundos da existência humana, nomeadamente o clássico dualismo entre o bem e o mal. A obra teve uma génese atribulada, o primeiro manuscrito acabou destruído pelo próprio autor que veio a falecer em 1940, antes da sua plena finalização. Foram publicadas diversas versões com base nos manuscritos disponíveis, algumas depois de sujeitas à censura, o que deu origem a inúmeras versões. Independentemente destas peripécias, constitui uma sátira deliciosa de qualidade indiscutível que merece figurar entre os melhores romances do século XX.

A história é complexa sem ser impenetrável e o humor cáustico de Bulgakov torna a leitura extremamente agradável. Idealmente, o leitor deverá deixar-se surpreender pelo enredo, sem conhecer à priori demasiados detalhes da obra. Basta saber que a ação decorre em dois momentos: nos anos 30, Moscovo recebe a visita do Diabo e do seu séquito, uma trupe caricata que atormenta sem piedade os surpreendidos moscovitas, que não conseguem encaixar estas personagens inauditas no seu ateísmo feroz. Com uma precisão cirúrgica, atacam as fraquezas do espírito humano, a ganância, a avidez, a cobardia, o ceticismo, a soberba intelectual, deixando à sua passagem um rasto de incredulidade e assombro perante a constatação de que tudo é possível, mesmo o impensável. Paralelamente, num tom realista e desprovido dos laivos do humor, assistimos ao desenrolar do julgamento de Jesus por um Pôncio Pilatos atormentado por enxaquecas e dilemas morais, que não consegue fugir ao inevitável desfecho, a fatídica execução que determinou o futuro da humanidade.

“A vida de Berlioz sempre decorrera de tal modo que não o preparara para fenómenos extraordinários. Empalidecendo ainda mais, arregalou os olhos e pensou, perturbado: «Isto não pode ser!…». Mas, infelizmente, podia ser e era”.

Título: Margarita e o Mestre

Autor: Mikhail Bulgakov

Editora: Contexto

Ano: 1991

Margarita

A balada da praia dos cães

José Cardoso Pires é um escritor excecional. Move-se no olimpo das palavras, no qual apenas os poucos eleitos são admitidos. Cada frase, capa parágrafo, cada capítulo de um livro seu tem valor intrínseco, pela sofisticação da forma, pela riqueza do conteúdo, por tudo o que consegue transmitir e pela forma como o faz. Dá gosto ler, reler, abrir em qualquer página ao acaso e saborear a leitura como um fim em si próprio, um exercício de pura estética.

«Balada da praia dos cães» tem este dom de nos transportar ao que de melhor a literatura tem para oferecer. A ação decorre no contexto claustrofóbico do Estado Novo. Relata a investigação do homicídio de um militar evadido da prisão, que estivera detido por tentativa de sedição militar. O seu cadáver, “em avançado estado de putrefação”, foi encontrado num “areal acidentado de pequenas dunas”. “Algumas peças do vestuário apresentavam-se rasgadas pelos cães”. Tem início a investigação, conduzida com minúcia pelo investigador Elias Santana, “com a reserva e sem paixão que competem à sua especialidade e tanto assim que jamais pronuncia a palavra Defunto, Finado ou Falecido a propósito do cadáver que lhe é confiado, preferindo trata-lo por De Cujus que sempre é um termo de meritíssimo juiz”. A reconstituição dos últimos dias do Major Luís Dantas Castro revela o contexto do seu confinamento, uma casa isolada onde se refugiou juntamente com três cúmplices profundamente oprimidos pela sua personalidade impositiva. No ambiente claustrofóbico do esconderijo, o major acaba por ocupar demasiado espaço, o que dita o seu fim.

Título: Balada da praia dos cães

Autor: José Cardoso Pires

Editora: D. Quixote

Ano: 1994

cães

Um punhado de pó

Evelyn Waugh é mais conhecido entre nós como o autor de «Reviver o passado em Brideshead», mas os seus excecionais dotes literários não se ficam por aí. Controverso e sarcástico, conservador e católico, inimigo visceral do estado social e da classe trabalhadora, racista e anti-semita, profundamente elitista e jamais politicamente correto, visto por muitos como um insuportável snob misantropo, nunca deixou de recorrer à sua sátira feroz para criticar, expor e denunciar tiques, clichés e preconceitos sociais, aos quais ele próprio não era alheio. Deixou-nos uma obra extensa e variada, que inclui novelas, contos, biografias, literatura de viagens, ensaios e reportagens.

«Um punhado de pó», considerado por muitos como a sua obra-prima, é um livro belo sobre o egoísmo elevado ao seu máximo expoente. Na sua escrita elegante, Waugh descreve o declínio de uma relação conjugal que une duas personagens profundamente dispares. Lady Brenda é visceralmente egocêntrica e vive frustrada na sua relação com um homem bondoso, ingénuo, rotineiro e previsível. Encontra distração numa relação extraconjugal com um jovem desenxabido e desinteressante, que de alguma forma preenche a sua necessidade de aventura. Por ele, ou por si própria, esquece tudo, incluindo o próprio filho. O marido desprezado, sujeito aos mais cruéis atos de insensibilidade, privado da sua família, do seu lar e da sua posição no mundo, procura evasão numa longa viagem por paisagens exóticas, mas acaba por regressar ao ponto de partida. O egoísmo humano persegue-o, como uma fatalidade incontornável. É um livro perturbador, intenso e inesquecível, que nos leva a questionar os fundamentos da alma humana.

“Ela franziu as sobrancelhas, não acreditando imediatamente no que lhe contavam. – O John… o John Andrew… Eu… Ah, graças a Deus… . – Depois rebentou em lágrimas”.

Título: Um punhado de pó

Autor: Evelyn Waugh

Editora: Cotovia

Ano: 2008

Pó

O menino de Cabul

«O menino de Cabul» é um livro intenso, profundo, comovente e apaixonante sobre a infância no Afeganistão dos anos 70, antes da guerra com a União Soviética ter vitimado muitos dos seus habitantes, condenando outros tantos ao exílio. É uma sociedade profundamente tradicionalista e hierarquizada, onde a inocência da juventude se depara constantemente com desafios que ameaçam corrompê-la. Mas mesmo neste clima adverso os sonhos simples de todos os meninos sobrevivem. Amir, de 12 anos, sonha impressionar o pai ao vencer um torneio de luta de papagaios, e para tal conta com a ajuda do seu corajoso amigo Hassan, um jovem de casta inferior cujas qualidades evidentes não permitem ultrapassar a ostracização social de que é alvo.

Este amigo fiel acaba por ser vítima de um acontecimento violento, a que Amir assiste inadvertidamente sem intervir. A culpa pela sua passividade perante o ataque ao amigo que sempre o defendeu irá acompanhá-lo ao longo dos anos, na sua fuga para os Estados Unidos com o pai e na sua vida no seu novo país. Já na idade adulta, surge a oportunidade de se redimir pelo erro do passado. Regressa então ao Afeganistão devastado pela guerra, em busca do filho perdido de Hassan, que irá finalmente beneficiar do ato de bondade que havia sido negado ao seu progenitor.

“For you, a thousand times over.”

Nome: O menino de Cabul

Autor: Khaled Housseini

Editora: Bloomsbury

Ano: 2004

Edição portuguesa: Editorial Presença

kite

Coração das Trevas

Entre 1885 e 1908, o rei Leopoldo II da Bélgica controlou, a título privado, o denominado Estado Independente do Congo, uma situação sancionada internacionalmente graças a uma aparente filantropia. A suposta missão civilizadora e humanitária do rei encobria a exploração das matérias primas do território e as atrocidades cometidas sobre as populações indígenas, sujeitas a um regime cruel de trabalho forçado. Quando as cotas de borracha não eram atingidas, os trabalhadores nativos sofriam uma punição terrível: eram executados e as suas mãos cortadas como prova da sua morte, ou em alternativa decepavam as mãos das suas esposas e filhos, de tal forma que a recolha de mãos se terá transformado num fim em si próprio, justificando todos os excessos e barbaridades. Cerca de metade da população terá perecido durante este terrível período.

Joseph Conrad trabalhou naquele território enquanto capitão de um barco a vapor que navegava o rio Congo, onde assistiu em primeira mão a esta crueldade desmedida. A sua censura desta situação repugnante surgiu na forma de uma das obras maiores da literatura, «Coração das Trevas», uma pequena grande narrativa, escrita de forma sublime. A história companha a viagem do narrador, Marlow, capitão de um barco que sobe o rio em direção a uma estação de recolha de borracha. Ali reside uma figura carismática, Kurtz, um respeitado e bem-sucedido agente que reúne mais borracha do que os seus congéneres. Esta personagem idealizada de quem toda a gente fala com admiração acaba por fascinar Marlow, que aguarda com expectativa pelo seu encontro com um homem supostamente culto e civilizado que labora nos confins da selvajaria, mantendo a sua integridade e sanidade mental intactas. No entanto, quando finalmente o encontra, depara-se com a personificação de toda a violenta maldade contida no imperialismo elevado ao seu expoente máximo. «O horror, o horror».

NOTA: o extraordinário filme «Apocalipse Now» é inspirado no «Coração das Trevas», transpondo a ação para o contexto da Guerra do Vietname.

“You remember I told you I had been struck at the distance by certain attempts at ornamentation, rather remarkable in the ruinous aspect of the place. Now I had suddenly a nearer view, and its first result was to make me throw my head back as if before a blow. Then I went carefully from post to post with my glass, and I saw my mistake. These round knobs were not ornamental but symbolic; they were expressive and puzzling, striking and disturbing – food for thought and also for the vultures if there had been any looking down from the sky; but at all events for such ants as were industrious enough to ascend the pole”.

Título: Coração das Trevas

Autor: Joseph Conrad

Editora: Wordsworth

Ano: 1999

Edição portuguesa: Editorial Estampa

coração trevas

Se isto é um homem

Não será um exagero considerar «Se isto é um homem» um dos melhores livros jamais escritos. É um relato dolorosamente lúcido do holocausto que permite descortinar a essência do carácter humano, frequentemente oculto por uma máscara de convenções sociais. Em Auschwitz, Primo Levi deparou-se com homens de várias proveniências, classes sociais, profissões, países e línguas. Desprovidos de qualquer direito ou bem pessoal, descaracterizados e humilhados, sujeitos a condições infra-humanas que os colocavam no limite da sobrevivência, reduzidos a uma rotina de sofrimento constante. É uma situação extrema, quase laboratorial, em que o homem sem nome nem direitos assume o papel do rato de laboratório. Porque na realidade já não é uma pessoa, é um objeto descartável que não deixa rasto na memória de ninguém.

Ali se revela o que é inato e adquirido, o que é essencial e supérfluo. Ali se vislumbram as caraterísticas essenciais que distinguem quem sucumbe de quem sobrevive. Ali se compreende que ninguém pode verdadeiramente sobreviver àquele trágico acontecimento enquanto ser humano de pleno direito. A sua humanidade ficou para sempre maculada.

“As personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade está sepultada, ou eles mesmos a sepultaram, debaixo da ofensa que sofreram ou que infligiram a outrem. Os SS maus e estúpidos, os kapos, os políticos, os criminosos, os proeminentes grandes e pequenos, até aos halftlinge indiferenciados e escravos, todos os degraus da insana hierarquia criada pelos Alemães, estão paradoxalmente unidos numa única desolação interior”.

Título: Se isto é um homem

Autor: Primo Levi

Editora: Editorial Teorema

homem

A feira das vaidades

«A feira das vaidades» é uma obra-prima da literatura vitoriana cuja ação decorre no contexto das guerras napoleónicas. Acompanha o percurso de duas mulheres aparentemente antagónicas, tanto ao nível do carácter como da posição social, que pela força das circunstâncias se associam numa amizade improvável e conturbada. Uma é aflitivamente ingénua, crédula e passiva, a outra arrivista, inteligente e determinada. Os atributos de cada uma são de tal maneira profundos e contraditórios que é fácil incluí-las entre as mais significativas personagens femininas de toda a literatura. Não serão, contudo, heroínas tradicionais, na medida em que estão longe da perfeição. Thackeray atribui-lhes a sua perceção desencantada da humanidade, com as suas vaidades, egoísmos e superficialidades.

São personagens ambíguas. Na sua busca pela felicidade fazem sofrer, consciente ou inadvertidamente, aqueles que delas se aproximam, por afeição ou interesse. E elas sofrem também, e com o sofrimento crescem, num processo de amadurecimento tão real que poderia ser o nosso.

“And in determining to make everybody else happy, she found herself so”.

Título: Feira das vaidades

Autor: William Makepeace Thackeray

Editora: Penguin

Ano: 1987

Edição portuguesa: Publicações Europa-América

vaidades

O Terceiro Homem

«O terceiro homem» é uma obra que tem uma génese curiosa. Graham Greene escreveu esta novela com o propósito de a utilizar como base para o argumento de um filme que se veio a tornar uma referência da história do cinema. Dirigido por Carol Reed e com Orson Wells num dos principais papeis, esta obra-prima do filme negro foi recentemente restaurada e vai regressar este mês às salas de cinema.

Retrata o universo do mercado negro na Viena dividida e arruinada do pós Segunda Guerra Mundial, onde um escritor falhado e ingénuo vai reencontrar um amigo de infância, personagem implacável na prossecução dos seus fins, que não se detém perante dilemas morais ou afetivos. A genialidade da história reside na forma como esta personagem se adivinha sem se ver e consegue marcar presença sem estar fisicamente presente. É apresentada enquanto um pressentimento constante que dirige todo o enredo, como um maestro invisível. É ela quem determina o curso da narrativa, é à sua volta que as restantes personagens se movem, é por sua causa que se encontram e desencontram. Numa das cenas mais memoráveis de sempre acaba por finalmente fazer a sua aparição e desvendar a verdade do seu caráter, numa apoteose magnificamente conseguida. É do melhor que se pode encontrar no cinema e na literatura.

“Pela primeira vez, Rollo Martins relembrou o passado sem saudades nem admiração, dizendo de si para consigo: «Ele nunca chegou a ser completamente adulto». Os demónios de Marlow usavam petardos amarrados à cauda; o mal é como Peter Pan – possui o horripilante privilégio da juventude eterna”.

Título: O Terceiro Homem

Autor: Graham Greene

Editora: Livros do Brasil

terceiro homem

As noites das mil e uma noites

Naguib Mahfuz, prémio nobel da literatura em 1988 e um dos melhores escritores árabes do século XX, propõe uma sequela das incontornáveis «Mil e Uma Noites» numa obra que ele próprio considera do mais importante que escreveu em toda a sua vida. A história é aparentemente simples. Depois de ouvir as histórias de Xerazade, o Sultão dá-se por vencido e casa-se com ela. No entanto, este gesto inesperado não representa uma mudança genuína na sua forma de ser, que se mantém inclemente e desprovida de empatia. Coloca-se então a questão de saber como ressuscitar a humanidade nesta alma intransigente e cruel.

Mahfuz propõe uma sábia solução. Transporta-nos a um mundo alegórico e fantástico onde o ser humano se despe de todos os artifícios e contempla a sua alma nua. É aqui que a verdadeira transformação se torna possível, a transformação que apenas um bom contador de histórias pode proporcionar àqueles que o escutam com uma mente aberta.

“Uma prova do receio da verdade é que não facilita a ninguém um caminho até ela nem priva ninguém da esperança de a alcançar. Deixa as pessoas a cavalgarem pelos desertos da perplexidade e a afogarem-se nos mares da dúvida. Quem acredita que a alcançou é porque se separou dela, e quem acredita que se separou dela foi porque perdeu o seu caminho. Não se pode chegar a ela sem fugir dela, é ineludível”.

Noites

Título: As noites das mil e uma noites

Autor: Naguib Mahfuz

Editora: Difel

Ano: 1998

A Selva

Em «A Selva», tanto o cenário como as personagens que nele se movem são retratados com extrema intensidade. A floresta amazónica surge como entidade viva, com vontade própria, implacável nos seus desígnios, cruel e fascinante em igual medida. Os seringueiros que nela ousam penetrar em busca da preciosa borracha são absorvidos pela verde imensidão que os ultrapassa e transforma. Naquele clima hostil laboram em condições infra-humanas, explorados por intermediários, patrões e comerciantes, todos unidos na humilhação do seu semelhante em prole do lucro.

A força do retrato reside certamente na sua aderência à realidade. Através do personagem central, um jovem português que é forçado a emigrar por razões políticas, Ferreira de Castro recupera a sua própria experiência enquanto emigrante no Brasil para denunciar a injustiça social inerente às relações laborais exercidas em situação de profunda desigualdade. É uma injustiça universal, perfeitamente transponível para a experiência migratória no mundo atual. O português que serve de nosso guia neste mundo de extremos sofre e vê sofrer, à semelhança do imigrante que no Portugal contemporâneo encontra a selva nas nossas cidades. A caminhada dos deserdados através dos séculos continua.

“Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática, que é a selva amazónica, pelo muito que nela sofri nos primeiros anos da minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida. E devia-o, sobretudo, aos anónimos desbravadores, que viriam a ser meus companheiros, meus irmãos, gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extração da borracha entregava a sua fome, a sua liberdade e a sua existência. Devia-lhes este livro, que constitui um pequeno capítulo da obra que há-de registar a tremenda caminhada dos deserdados através dos séculos, em busca de pão e de justiça”.

Título: A Selva

selva

Autor: Ferreira de Castro

Editora: Guimarães Editores

Ano: anos 70