Categoria - romance

O Romance de Genji

Se os livros abrem horizontes e transportam o leitor a outros mundos, poucos o levam numa viagem tão longínqua como «O Romance de Genji», escrito por uma dama da corte japonesa do século X. Quem ousar descobrir esta obra singular encontrará um tempo e um lugar que dificilmente irá reconhecer. Tudo ali é estranho, as sensações, os valores morais, o conceito de belo, o estilo de vida, as relações sociais. Para entrar no espírito do livro o leitor é convidado a abandonar aquilo que é e em que acredita, como um antropólogo que analisa uma tribo remota tornando-se parte integrante dela, sem julgamentos nem preconceitos.

Quando atingir esse estado de desprendimento poderá então usufruir plenamente desta jornada extraordinária pelos inúmeros amores do belo e desejado Príncipe Genji, que não perdem o seu valor nesta multiplicidade, contrariando o conceito ocidental de monogamia. Cada objeto da sua paixão tem os seus atributos e particularidades, que não se esgotam mas complementam, enriquecendo a vida do ardente Príncipe. É no amor que ele existe e é pelo amor que se realiza enquanto elemento excecional de uma sociedade privilegiada, algo com que o leitor já poderá empatizar, pois os encantos da sedução são universais. Uma leitura essencial para quem gosta de se aventurar para fora de si próprio.

“O amor que Genji acreditava sentir por Asagao era tão arrebatador como fazia parecer. A razão principal para aquela paixão residia na atitude distante dela. Genji nunca esteve disposto  admitir uma derrota e a rejeição de Asagao punha-o fora e si”.

Genji

Título: O Romance de Genji

Autor: Murasaki Shikibu

Editora: Exodus

Ano: 2008

Dora Bruder

Um anúncio publicado num jornal antigo é inadvertidamente descoberto pelo narrador. Revela um casal judeu que procura a sua filha adolescente desaparecida durante a ocupação nazi. Durante décadas tentará reconstituir os passos desta jovem que no desabrochar da vida viu o universo fechar-se implacavelmente à sua volta. Procurava sem dúvida evadir-se para um mundo real ou imaginado, daí as fugas sucessivas do internato e do pequeno quarto de hotel onde vivia com a família. Nunca o encontra. Esse mundo deixara de existir para os judeus parisienses de então. Os seus caminhos afunilam-se gradualmente até restar apenas um único destino possível, Auschwitz. É lá que por percursos diversos todos os elementos daquela reduzida e desamparada família irão desaguar, num derradeiro e trágico reencontro.

Tudo o que se disser sobre o holocausto nunca será suficiente para descrever aquele acontecimento tenebroso, um dos mais negros da história da humanidade. Patrick Modiano, prémio nobel da literatura em 2014, contribui de forma sublime para este esforço de reconstituição. Enquanto o narrador percorre as ruas do seu presente evoca o passado da ocupação, quando aquelas ruas, aquelas árvores, aqueles edifícios ou outros entretanto destruídos, testemunharam o horror do que o homem foi capaz de fazer ao homem.

“Conviria saber se estava bom tempo nesse 14 de dezembro, dia da fuga de Dora. Talvez fosse um domingo aprazível e ensolarado de inverno como muitos outros em que um sentimento de desafogo e eternidade nos invade – o sentimento ilusório de que o curso do tempo está suspenso e que basta deixarmo-nos escorregar por esta brecha para escapar ao tornilho que voltará a fechar-se sobre nós”.

Dora

Título: Dora Bruder

Autor: Patrick Modiano

Editora: Porto Editora

Ano: 2015

Ressurreição

«Ressurreição» acompanha um nobre na sua busca por redenção face a um pecado cometido na juventude, a sedução de uma empregada que em resultado do sucedido acaba despedida e forçada a recorrer à prostituição. Anos mais tarde, reencontra-a ao ser convocado para jurado no seu julgamento por homicídio, do qual é injustamente acusada. Confrontado com as consequências trágicas do seu ato passado na vida daquela mulher, sofre uma revolução espiritual.

Esta obra tem a particularidade de ter sido o último e menos reconhecido romance de um dos grandes escritores de sempre, Lev Tolstoi. É interessante ver onde chegou em fim de vida um autor que na meia idade escreveu obras de referência da literatura universal como «Guerra e Paz» e «Anna Karenina».  Na velhice Tolstoi não é mais o mesmo, graças a um carácter reflexivo e observador que o levou a questionar, e a questionar-se, constantemente, livrando-o da feliz imutabilidade que caracteriza os espíritos menos inquietos. Este Tolstoi em fim de vida, e que certamente mais mudaria se mais vivesse, renega os seus grandes romances por não cumprirem a função que agora considera primordial – a consciencialização dos leitores.  Na sua perspetiva, o romance deve transportar quem o lê a um mundo ficcional à superfície, mas real no seu enquadramento, para que através da empatia criada com as personagens tome contacto com realidades e problemas sociais aos quais não deve ser alheio.

Esta perspetiva não agradou a leitores e críticos, que em vez do romance belo e profundo que as obras anteriores fariam antecipar, encontraram um texto que remete constantemente para reflexões de carácter moral, social e filosófico. Apesar da receção desfavorável, é um romance magnífico. As reflexões são intemporais, sempre tendo em conta o devido contexto, e revelam uma sensibilidade e capacidade de análise extraordinárias. O questionamento é sem dúvida incómodo, e no caso de Tolstoi levou-o a renegar a condição de nobre proprietário e  a abandonar a sua casa, família e bens, tendo vindo a falecer pouco depois numa estação de comboios, de pneumonia. A ausência de questionamento é bastante pior, pois desagua necessariamente na pobreza de espírito.

 “Todos nós que nos entregamos a uma atividade qualquer precisamos de considerá-la importante e razoável para podermos trabalhar. Portanto, seja qual for o nível em que estacione, o ser humano constrói imediatamente uma conceção da vida e nela insere a sua ocupação, que por instinto considera necessária e razoável. Imagina-se a maior parte das vezes que um ladrão, um traidor, um assassino ou uma prostituta se envergonham da profissão que exercem ou, pelo menos, que a consideram má, mas na realidade isso não sucede. Os homens a quem o destino ou os pecados colocaram em situação definida, por mais imoral que ela seja, arranjam maneira de conceber a vida em geral de forma a que a sua situação lhes apareça como legítima e admissível – e para conservarem esse modo de ver apoiam-se instintivamente nos que se encontram em idênticas condições, nos que concebem a vida com o mesmo critério e que ocupam também situações claras mas anormais. Admiramo-nos de ver ladrões jactarem-se da sua habilidade, prostitutas da sua corrupção e assassinos da sua insensibilidade, mas isso acontece porque estas espécies de indivíduos são restritas, porque se movem em círculos e atmosferas que não têm contacto com os nossos. Já não nos surpreende, por exemplo, ver homens ricos orgulharem-se da sua riqueza – muitas vezes conseguida à custa de roubo ou usurpação, – ou poderosos do seu poder, que não raro significa violência e crueldade. Não notamos a maneira como a conceção natural da vida é desvirtuada por esta gente, assim como o primitivo significado do bem e do mal, e não só o não notamos, como também não nos admiramos. E isto unicamente porque o número daqueles que partilham esta perversa conceção da existência é grande, e porque nos achamos compreendidos nesse número”.

Post parcialmente retirado do meu antigo blog: http://cam_as_i_am.blogs.sapo.pt/

Está disponível uma edição mais recente, de 2010, da Editorial Presença. A foto aqui apresentada não é a da edição da Editorial Minerva, que já é antiga e está em mau estado.

Ressurreição

Título: Ressurreição

Autor: Lev Tolstoi

Editora: Editorial Minerva

Ano: 1965

Mil novecentos e oitenta e quatro

Já muito se disse de «Mil novecentos e oitenta e quatro», a mais celebrada utopia negra, a par do «Admirável Mundo Novo», de Aldous Huxley. Mas um blog dedicado a livros, que ainda por cima tem a pretensão de apresentar boas propostas literárias, tem que correr o risco de ser redundante ao apresentar mais uma vez esta obra fantástica da autoria de George Orwell. O enredo é aparentemente simples: num futuro hipotético, um regime totalitário e personalista subjuga implacavelmente os seus cidadãos. Quatro ministérios – do Amor, da Verdade, da Abundância e da Paz; três classes sociais rigidamente delimitadas – superior, média e baixa; uma nova língua telegráfica e um líder omnipresente, definem o mundo redutor em que o personagem principal se move.

A sua função no esquema das coisas é emblemática: rever documentos históricos com o objetivo de adequar o passado às necessidades do presente, o que implica eliminar personalidades que não se adequam à visão do mundo imposta pelo regime. Eliminar não fisicamente, mas da memória coletiva: apagar registos e referências, anular para sempre a sua existência, da forma mais absoluta e irremediável. Neste clima claustrofóbico não há lugar para devaneios ideológicos ou sentimentais, como este incauto funcionário irá perceber. E, tal como ele, também o leitor ganha consciência das brutais implicações do totalitarismo, um fenómeno bem real e infelizmente recorrente na história da humanidade.

 “ Vulgarmente, as pessoas que incorriam no desagrado do Partido desapareciam, pura e simplesmente, nunca mais se ouvindo falar delas. Nunca restava o menor indício do sucedido. Nalguns casos, podiam nem ter morrido. Sem contar com os seus pais, Winston conhecera talvez umas trinta pessoas que em dado momento desapareceram”.

Título: Mil novecentos e oitenta e quatro

1984

Autor: George Orwell

Editora: Antígona

Ano: 1999

Ventos do Apocalipse

Num país assolado pela guerra e pela seca, a necessidade extrema empurra um grupo de aldeões para uma busca desesperada e inglória por melhores paragens. Inglória porque a desgraça de que fogem os persegue implacavelmente, ou mesmo os precede no seu caminho, semeando a fome, a doença, a violência e a morte. Os 4 cavaleiros do apocalipse desceram à terra e semeiam a destruição, deixando pouca margem para a esperança. Apesar disso, a natureza humana consegue fazer a sua aparição e ainda há espaço para o amor abnegado e para a solidariedade, mas também para a maldade, a inveja e a raiva. É neste cenário que as personagens se movem em busca de um inatingível ideal – a Paz, sobre a qual consigam reconstruir as suas vidas arruinadas.

É assim que o segundo romance de Paulina Chiziane, «Ventos do Apocalipse», nos transporta à dura realidade da guerra civil moçambicana. A autora, que durante a guerra trabalhou na Cruz Vermelha, testemunhou os seus horrores e transpô-los para este livro magnífico mas perturbador, onde a perspetiva feminina está sempre presente: “os estereótipos colados à imagem da mulher funcionaram muito bem nesta guerra, na qual participaram de uma forma muito cruel. E ninguém deu por isso. Quando eu digo que as mulheres são invisíveis, são-no em todos os aspetos. Neste livro, descrevo essa parte horrível da guerra, mas não descrevi tudo. Há coisas que jamais terei coragem para escrever”.

“O arrefecimento da terra virá com a chuva que apagará o fogo das lanças dos cavaleiros do céu. Nesse tempo, a força das mãos fará renascer das veias a razão da existência, mas quando? Os homens estão quase resignados e definham ao gosto do diabo. Fugir para onde? Os caminhos para a luz estão armadilhados, o pobre ser humano gira à volta de si mesmo no interior da armadilha tecida pelos seus semelhantes. Resta apenas um caminho: assinar o divórcio com a vida e transformar-se em poeira que o vento fará levantar, até ao farfalhar edénico das palmeiras”.

Post retirado do meu antigo blog: http://cam_as_i_am.blogs.sapo.pt/

A citação da autora estava disponível num link que já não se encontra ativo mas que optei por manter por me parecer relevante: http://www.ccpm.pt/paulina.htm

apocalipse

Título: Ventos do Apocalipse

Autora: Paulina Chiziane

Editora: Editorial Caminho

Ano: 1999

Almas Mortas

Na Rússia do século XIX um indivíduo astuto e ganancioso compra pessoas já falecidas. Este exercício macabro tem uma finalidade bastante pragmática: conseguir terras cedidas pelo autocrático governo russo em função do número de servos que se detinha. Enquanto ainda figurassem nos censos, os mortos valiam como vivos, uns e outros meras coisas, objetos indiferenciados, bens transacionáveis, parte integrante das propriedades dos seus senhores, sem qualquer valor sentimental ou o respeito devido à pessoa humana. Os proprietários coniventes, que beneficiam da transação, vão desfilando ao longo do livro numa triste caricatura da mesquinhez daqueles que apoiados numa rígida hierarquia social se regozijam da sua superioridade. A eles se juntam os funcionários corruptos de uma burocracia caduca, completando o quadro de uma sociedade decadente.

«Almas Mortas» é uma sátira brutal e impiedosa, interrompida pela morte do seu autor, que deixou em aberto um final que se adivinha. É, sem dúvida, uma obra maior da literatura mundial, escrita por um dos maiores escritores de todos os tempos. Para ler, reler e sobretudo refletir, porque a história tem o mau hábito de se repetir.

“Não se pode dizer que Tchítchikov tenha roubado, mas sim que se aproveitou. É que cada um de nós se aproveita de alguma coisa: este, da floresta pública; aquele, dos dinheiros públicos; o terceiro rouba os próprios filhos a favor de uma atriz em digressão; o quarto rouba os camponeses para comprar móveis Hambs ou uma caleche. O que se pode fazer se são tantos neste mundo os chamarizes? Restaurantes não só caros mas com preços loucos, bailes de máscaras, festas, danças com ciganas. Como pode alguém conter-se se toda a gente, por todos os lados, faz o mesmo e se também a moda assim o exige – tenta lá conter-te! Até porque é impossível à pessoa conter-se eternamente. O homem não é Deus. Assim, também Tchítchikov, à semelhança dessa gente que por toda a parte se multiplica e adora toda a espécie de confortos, virou o bico ao prego em seu próprio proveito”.

Título: Almas Mortas

almas

Autor: Nikolai Gogol

Editora: Assírio e Alvim

Ano: 2002

Morte em Veneza

Um escritor famoso, ascético e cerebral, profundamente dedicado à sua escrita, parte numa viagem que quebra a sua severa rotina, uma aventura perigosa para o seu autocontrolo. Isolado, fora do seu ambiente, desenvolve um fascínio obsessivo por um jovem de extraordinária beleza que observa no hotel em que está hospedado. Sem trocarem uma palavra ou um toque, cruzam olhares dúbios que alimentam uma paixão platónica e incontrolável. Rendido aos seus sentimentos, o escritor entrega-se à sua derradeira decadência.

«Morte em Veneza» é uma grande obra da literatura que tem a particularidade de ter sido adaptada ao cinema por Luchino Visconti, dando origem a uma obra prima do cinema. Não é assim possível falar de uma sem lembrar a outra, pois o filme transporta o livro para uma nova dimensão. Com uma fotografia extraordinária, a fabulosa interpretação de Dirk Bogarde e a excelência da música de Maller, é surpreendente como se pode dizer tanto em tão poucas palavras, pois todo o filme, tal como o livro, é subtil contemplação. Para saborear uma e outra vez, porque o sublime nunca é demais.

“Votado, assim, a suportar em ombros tão delicados o peso das tarefas que o seu génio lhe cometia, e decidido a ir longe, tinha absoluta necessidade de disciplina”.

Título: Morte em Veneza

veneza

Autor: Thomas Mann

Editora: Livros de bolso Europa-América

Ano: 1990

Um estranho lugar para morrer

A capa de «Um estranho lugar para morrer» compara Derek B. Miller a autores policiais escandinavos como Stieg Larsson e Hennin Mankell, uma comparação injusta pois esta obra não é um mero triller policial. É um livro surpreendente, original, profundo sem ser denso e com uma qualidade indiscutível. Apresenta uma personagem complexa em luta com os fantasmas do passado, que num presente improvável se depara com uma situação limite.

A narrativa segue um idoso viúvo e supostamente senil que emigra para junto da neta grávida. Sente-se perto do fim e quer vislumbrar a pequena vida que dará continuidade à sua. A neta perde o bebé, o idoso fica perdido. Reencontra-se num menino, também ele estrangeiro, que salva de uma situação de violência doméstica. Não falam a mesma língua um do outro, nem a do país que os acolhe, mas comunicam. Fogem juntos e o velho pega numa mão de menino pela primeira vez em 50 anos, uma sensação que não esqueceu.

“Não fazias ideia de que eu sabia tanta coisa, pois não? Mas sei. Nunca ninguém me pergunta nada. Por sorte, tenho uma vida interior rica. E, agora, tenho-te a ti”.

Título: Um estranho lugar para morrer

estranho

Autor: Derek B. Miller

Editora: Edições Asa

Ano: 2014

A idade da Inocência

O primeiro romance escrito por uma mulher a ganhar o prémio Pulitzer para ficção, em 1921, «A idade da inocência» é uma obra que merece ser saboreada na sua língua original. Retrata um romance, passado em Nova Iorque na década de 1870, que esbarra em convenções sociais preconceituosas e hipócritas, um tema intemporal que pode facilmente ser transposto para outros contextos. Mas mais do que o enredo, é a forma como este é apresentado que cativa e seduz o leitor. Uma escrita elegante descreve as subtilezas do desabrochar de uma relação que não é bem vista socialmente, entre um homem comprometido e a prima da sua noiva, uma mulher divorciada e sofrida.

Como é um amor censurado, é nas entrelinhas que se desenrola, nos pequenos gestos, palavras e olhares cheios de significado para os dois protagonistas, enquanto permanecem indiferentes para quem os rodeia. Mas o afeto entre os dois é incontrolável, acabando por transbordar e evidenciar-se. E a sociedade é cruel quando confrontada com sentimentos que a desafiam, que são anulados sem piedade, dando lugar a uma existência banal, despojada dos voos do coração.

“There was one episode, in particular, that held the house from floor to ceiling. It was that in which Harry Montague, after a sad, almost monosyllabic scene of parting with Miss Dyas, bade her good–bye, and turned to go. The actress, who was standing near the mantelpiece and looking down into the fire, wore a gray cashmere dress without fashionable loopings or trimmings, moulded to her tall figure and flowing in long lines about her feet. Around her neck was a narrow black velvet ribbon with the ends falling down her back.

When her wooer turned from her she rested her arms against the mantel–shelf and bowed her face in her hands. On the threshold he paused to look at her; then he stole back, lifted one of the ends of velvet ribbon, kissed it, and left the room without her hearing him or changing her attitude. And on this silent parting the curtain fel”.

The-Age-of-Innocence

Título: The age of innocence

Autor: Edith Wharton

Editora: Wordsworth Classics

Ano: 1994

Em português está editado pela Publicações Europa-América

Um dia na vida de Ivan Denisovich

Aleksandr Soljenitsin, vencedor do Prémio Nobel em 1970, conheceu pessoalmente os horrores dos campos de concentração soviéticos, os Gulag, onde foi condenado a passar vários anos. A sua experiência é retratada nesta obra singular inteiramente passada num único dia na vida de um prisioneiro detido por um regime totalitário desumanizador. Rodeado das personagens tipo que se poderiam encontrar neste contexto, do revoltado ao corrompido, as suas estratégias de sobrevivência são descritas de forma simples e direta, levando a refletir sobre o que resta de um homem num sistema que o procura anular. E o que sobra é a luta pela vida, na sua expressão mais básica, o cumprimento das tarefas diárias em condições extremas enquanto se procura maximizar os ganhos e reduzir as perdas.

É um dia vulgar, como tantos outros, sem nenhum acontecimento extraordinário a assinalá-lo. E como tudo é relativo, é um «dia bom» para alguém injustamente privado da sua liberdade num regime onde a justiça e a liberdade nada significam. Porque é bom chegar ao fim do dia vivo, quando mais nada nos é dado a esperar.

“Shukhov adormeceu completamente satisfeito, feliz. Fora bafejado por vários golpes de sorte durante aquele dia: não o haviam posto no xadrez; não tinham enviado a brigada para o Centro; surripiara uma tigela de kasha ao almoço; o chefe da brigada fixara bem as rações; construíra uma parede e tirara prazer do seu trabalho; arranjara aquele pedaço de metal e conseguira passa-lo; recebera qualquer coisa de Tsezar, à noite; comprara o tabaco. E não caíra doente. Um dia sem uma nuvem carregada, sombria. Quase um dia feliz”.

Título: Um dia na vida de Ivan DenisovichIvan Denisovich

Autor: Aleksandr Soljenitsin

Editora: Círculo de Leitores

Ano: 1974