Categoria - policial

Sentença em Pedra

Obra emblemática de uma grande senhora do crime, «Sentença em Pedra» é um triller psicológico genial que se lê compulsivamente da primeira à última página, apesar de Ruth Rendell revelar o desfecho logo no início da obra: uma família vai ser assassinada pela sua governanta. Contrariamente ao que sucede com o policial tradicional, não é a curiosidade sobre o final que prende o leitor, mas sim a forma como os acontecimentos se sucedem até àquele momento fatídico.

A família é feliz, aparentemente perfeita. Viveu sempre num mundo benevolente, isento de maldade. Todos os seus elementos são ricos, cultos, bonitos, bem integrados na comunidade onde os vizinhos os respeitam. Ironicamente, é essa inocência complacente que vai ditar a sua morte. Quando confrontados com a maldade, não a reconhecem. Confundem o isolamento da nova governanta com timidez, a sua frieza com reserva, a sua compulsividade com dedicação. E assim trazem uma psicopata para o seu seio, provocam-na com a sua boa-vontade inconsciente, despertam o monstro que se alberga naquele coração de pedra. Quando a inquietação finalmente surge, já é tarde de mais.

“Não houve piedade que a movesse, nem remorso. Não pensou em amor, alegria, paz, descanso, esperança, vida, pó, cinzas, desperdício, necessidade, ruína, loucura e morte, que tinha assassinado o amor e uma vida feliz, arruinado a esperança, desperdiçado força intelectual, acabado com a alegria, porque ela mal sabia o que estas coisas são. Não viu que tinha deixado cadáveres gritando por sepultura. Pensou que era uma pena aquela carpete tão bonita ter ficado naquela porcaria e ficou contente por nenhuma gota de sangue lhe ter tocado”.

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Título: Sentença em Pedra

Autor: Ruth Rendell

Editora: Gradiva

O Grande Manuscrito

«O Grande Manuscrito», da autoria do escritor sérvio Zoran Zivkovic, vencedor do World Fantasy Award, é uma agradável e descontraída leitura que conjuga os géneros policial e fantástico. Acompanha as aventuras de um inspetor da polícia bibliófilo em busca de uma escritora desaparecida de um apartamento vazio e fechado por dentro. O mistério adensa-se à medida que a história avança, com uma seita secreta e implacável em perseguição da sua última obra, a qual supostamente concede a imortalidade ao seu primeiro leitor. Os livros são os principais protagonistas deste intrincado enredo em que os enigmas inexplicáveis se vão somando até à apoteose final, quando tudo é finalmente desvendado num desfecho agradavelmente inesperado.

Adverte-se o potencial leitor de que esta obra é a sequela de uma outra, «O Último Livro», facto que infelizmente não consta da sua capa. É aconselhável ler as obras sequencialmente, pois estão de tal forma interligadas que se começa pelo «Grande Manuscrito», vai perder acontecimentos relevantes para a história.

“Já tinha decidido prosseguir quando, de repente, tive um mau pressentimento. Não foi provocado por nada no exterior. Nada perturbava aquela escuridão impenetrável, nem chegava qualquer som aos meus ouvidos. Mas, mesmo assim, tive a clara sensação de que já não estava sozinho naquele pequeno lanço de escada. Parecia que alguém corria escada abaixo, junto ao corrimão do outro lado”.

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Título: O Grande Manuscrito

Autor: Zoran Zivkovic

Editora: Cavalo de Ferro

Ano: 2015

As Esganadas

O livro brasileiro de ficção mais vendido em 2012 é uma surpresa muito agradável. Jô Soares transporta-nos para o Rio de Janeiro do final dos anos 1930, onde uma série de bizarros homicídios são cometidos por um serial killer de gosto muito peculiar. As vítimas são mulheres obesas e a arma do crime… doces portugueses! Estão lançados os dados para uma divertida caça ao criminoso protagonizada por uma original equipa de detetives que contam com o apoio de uma bela e corajosa fotógrafa.

Neste invulgar e divertido romance policial o leitor não lê avidamente até à última página a roer as unhas até ao sabugo para saber quem é o criminoso, que lhe é revelado logo no início. Toda a narrativa se centra nas peripécias atabalhoadas da trupe detectivesca que reúne um ex-investigador português dado a grandes leituras a um trio de policiais brasileiros pouco convencionais. Com grande mestria Jô Soares diverte o leitor com crimes macabros passados no Brasil do Estado Novo, não deixando de fazer referência a pormenores históricos curiosos, como uma corrida de automóveis em que participou Manoel de Oliveira.

“A gorda é a última freguesa a deixar o tradicional chá a tarde na confeitaria Colombo. Segue pela Gonçalves Dias em direção à rua do Ouvidor. A sua bata branca é amarelada pela infinita quantidade de molhos e caldos nela derramada. Farelos antiquíssimos apegam-se como náufragos desesperados aos babados da blusa. A gorda é bela, bela e voraz”.

Título: As Esganadas

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Autor: Jô Soares

Editora: Editorial Presença

Ano: 2013

O homem que via passar os comboios

Georges Simenon foi um escritor excecionalmente prolífico que publicou perto de 200 romances, para além de numerosos artigos, contos e novelas. Neste caso, a quantidade não foi inimiga da qualidade, como demonstram as inúmeras obras em que figura a personagem mais emblemática que criou, o comissário Maigret. Os pequenos livros que seguem as suas investigações transportam-nos a cenários maravilhosamente descritos de forma sucinta, pequenas localidades, aldeias, zonas urbanas com um ambiente muito próprio. É ali que Maigret faz a sua observação participante, como um antropólogo em pleno trabalho de campo. Instala-se na pensão local, frequenta o café, passeia pelas ruas e observa os intervenientes que ocasionalmente questiona. E assim, de forma metódica e persistente, desvenda as motivações e os conluios que se escondem em cada crime. São histórias fantásticas na sua aparente simplicidade, indispensáveis para qualquer amante de policiais.

«O homem que via passar os comboios» não tem Maigret como figura principal, mas ultrapassa a qualidade a que esta personagem nos habituou. É uma profunda obra psicológica passada na perspetiva do criminoso, um homem aparentemente normal, respeitável, plenamente integrado na sociedade, que quando confrontado com um acontecimento perturbador opta por enveredar por uma vida de crime. É com alguma incredulidade e bastante deleite que o leitor acompanha esta metamorfose inaudita, que explora brilhantemente os meandros mais negros da mente humana.

“Logo, Kees sonhara vir a ser outra coisa que não Kees Popinga. E era justamente por isso que ele era tão Popinga, que ele o era demasiado, que ele exagerava, porque sabia que, se cedesse num só ponto, nada mais o susteria”.

Título: O homem que via passar os comboios

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Autor: Georges Simenon

Editora: Público – coleção mil folhas

Ano: 2002

Jaime Bunda

A boa literatura não é apenas composta de grandes obras, densas e profundas. O universo literário é tão vasto quanto os diversos estados de espírito dos leitores, daí a sua riqueza e o fascínio que exerce naqueles que se deixam seduzir pelos seus encantos. «Jaime Bunda» é um companheiro muito agradável para os momentos mais descontraídos, tão agradável que os dois livros que Pepetela escreveu com esta original personagem sabem a pouco. É difícil não desejar continuar a seguir as peripécias deste avantajado detetive, que cativa com o seu estilo desajeitado e ingénuo.

No peculiar ritmo angolano, um país em transformação, pleno de idiossincrasias e contradições, serve de cenário às aventuras mirabolantes de um detetive fascinado por romances policiais. Jaime Bunda faz um esforço atabalhoado para deslindar complexos enigmas, tão intrincados quanto as redes da corrupção e injustiça que marcam a sociedade do seu país. Pois apesar do tom satírico e aparentemente leve dos livros, a crítica social está lá, nas entrelinhas.

“JB despejou o copo de vinho tinto, maneira de limpar as vias de entrada para a caldeirada. Com indisfarçável prazer. Nicolau suspirou de alívio, finalmente o grande detetive gostara de alguma coisa. E ficou concentrado no prato para acompanhar o ritmo de Jaime Bunda em plena e espantosa missão de esvaziar em tempo recorde a panela de caldeirada, pedindo mais para poder servir de conduto aos dois funges de que entretanto se servira. O chefe local dos SIG não sabia se nova panela significava aumento da despesa ou se fazia parte da conta, mas pouco lhe interessava, o serviço nunca fora tão mesquinho ao ponto de analisar à lupa o que se comia em refeições de trabalho, ainda por cima com visitantes ilustres. Não diziam que os SIG estavam fora do Orçamento Geral do Estado? O dinheiro saía de um qualquer saco azul. Portanto, também ninguém controlava despesas menores. E provavelmente nem as maiores, mas isso era blasfémia que só se permitia pensar de boca aferolhada”.

Título: Jaime Bunda agente secreto

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Autor: Pepetela

Editora: Dom Quixote

Ano: 2001

Título: Jaime Bunda e a morte do americano

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Autor: Pepetela

Editora: Dom Quixote

Ano: 2003

Um estranho lugar para morrer

A capa de «Um estranho lugar para morrer» compara Derek B. Miller a autores policiais escandinavos como Stieg Larsson e Hennin Mankell, uma comparação injusta pois esta obra não é um mero triller policial. É um livro surpreendente, original, profundo sem ser denso e com uma qualidade indiscutível. Apresenta uma personagem complexa em luta com os fantasmas do passado, que num presente improvável se depara com uma situação limite.

A narrativa segue um idoso viúvo e supostamente senil que emigra para junto da neta grávida. Sente-se perto do fim e quer vislumbrar a pequena vida que dará continuidade à sua. A neta perde o bebé, o idoso fica perdido. Reencontra-se num menino, também ele estrangeiro, que salva de uma situação de violência doméstica. Não falam a mesma língua um do outro, nem a do país que os acolhe, mas comunicam. Fogem juntos e o velho pega numa mão de menino pela primeira vez em 50 anos, uma sensação que não esqueceu.

“Não fazias ideia de que eu sabia tanta coisa, pois não? Mas sei. Nunca ninguém me pergunta nada. Por sorte, tenho uma vida interior rica. E, agora, tenho-te a ti”.

Título: Um estranho lugar para morrer

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Autor: Derek B. Miller

Editora: Edições Asa

Ano: 2014

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