Categoria - romance

Oliver Twist

Há algo de teatral em Oliver Twist. As personagens são estereotipadas e unidimensionais, símbolos absolutos do bem ou do mal, do conforto ou do desamparo, da esperança ou do desespero. O enredo corre sobre os carris de uma série pouco provável de coincidências que se sucedem em catadupa, como se o mundo fosse de facto uma ostra onde tudo se relaciona com tudo. Como Charles Dickens é um escritor magistral, utiliza todos estes problemáticos elementos sem jamais se atolar no pântano da mediocridade. Antes produz um grande clássico da literatura universal, uma obra que não só apresenta um indiscutível valor literário, como assume um papel social importantíssimo ao transportar o leitor até às consequências mais tenebrosas da revolução industrial.

É impossível não sentir empatia pelo desafortunado Oliver Twist, uma criança votada à mais absoluta miséria por um sistema social profundamente injusto, assente em relações de poder de tal forma desiguais que os direitos mais básicos, essenciais à vida humana, são sistematicamente negados a uma parte significativa da população, a qual é implacavelmente culpabilizada pelas estratégias que encontra para sobreviver. «Oliver Twist» é a caricatura de uma sociedade cruel e hipócrita, reflexo da própria experiência de vida do autor. Se a consciencialização é um processo irreversível, quem lê Charles Dickens arrisca-se a ficar irremediavelmente desperto para os meandros mais negros da alma humana, o que, sem qualquer dúvida, foi a intenção do autor.

 “Among other public buildings in a certain town, which for many reasons it will be prudent to refrain from mentioning, and to which I will assign no fictitious name, there is one anciently common to most towns, great or small: to wit, a workhouse; and in this workhouse was born; on a day and date which I need not trouble myself to repeat, inasmuch as it can be of no possible consequence to the reader, in this stage of the business at all events; the item of mortality whose name is prefixed to the head of this chapter”.

 

Título: Oliver Twist

Autor: Charles Dickens

Editora: Publicações Europa-América

Ano: 2005

O Xangô de Baker Street

O humor contagiante de Jô Soares transforma «O Xangô de Baker Street» numa obra absolutamente irresistível. Figuras históricas como D. Pedro II, Sarah Bernhardt e Chiquinha Gonzaga cruzam-se com um Sherlock Holmes peculiarmente desajeitado que corre o risco de perder a virgindade com uma mulata irresistível, símbolo de um Brasil rebelde que desafia a austeridade da Londres Victoriana. A realidade e a ficção misturam-se no ambiente delicioso do Rio de Janeiro oitocentista, onde o famigerado detective se debate com a busca por um serial killer com predilecção por jovens atraentes e violinos raros. À medida que os cadáveres das jovens horrivelmente mutiladas vão aparecendo pela cidade, Sherlock Holmes vai-se rendendo aos encantos dos trópicos enquanto procura desvendar o mistério que o ilude.

Sobressai no livro o retrato pitoresco de uma personagem literária tão celebrada. Em vez de se cingir ao original, Jô Soares cria a sua própria versão de Sherlock Holmes, uma versão menos genial mas infinitamente mais divertida do detective que fala português com sotaque lusitano, inventa a caipirinha, usa roupa extravagante e seduz jovens nos jardins públicos. As suas deduções estão longe da infalibilidade tradicional, mas o que perde em coeficiente intelectual ganha em inteligência emocional, o que lhe permite usufruir plenamente dos prazeres que a vida tem para lhe oferecer num mundo novo com tanto para descobrir.

 “O seu corpo começou a tremer, e subitamente, o impávido doutor Watson, ex-cirurgião do quinto regimento de fuzileiros de Nurthumberland, estava recurvado como um velho, rodopiando pela sala na tradicional postura de Omulu”.

Título: O Xangô de Baker Street

Autor: Jô Soares

Editora: Presença

Ano: 2013

Pais e filhos

«Pais e filhos» é uma daquelas obras de qualidade rara e excepcional que facilmente se transformam no livro de uma vida. Os meandros mais profundos da alma humana fluem livremente em passagens de uma beleza extraordinária, que dá gosto ler e reler. É uma obra que nunca se esgota, quando chegamos ao fim regressamos naturalmente ao início, abrimos uma qualquer página ao acaso, procuramos uma passagem que deixou a sua marca e saboreamos a grandiosidade da obra maior de um grande autor.

O livro foca o choque de gerações, de perspetivas de vida que se transformam de forma constante mas ainda assim inesperada para quem vai ficando agarrado aos valores fundamentais de ontem, hoje tornados obsoletos. É um tema intemporal, que aqui aborda o confronto entre os liberais russos da década de 1830 e os seus filhos, adeptos do movimento niilista. Bazárov, um promissor jovem de indiscutível excelência intelectual, encara com superioridade condescendente e ligeiro enfado o mundo que o rodeia, enquanto inspira o seu discípulo Arkádi, menos radical e mais vulnerável às subtilezas das relações humanas. Mas o próprio Bazárov, de forma inesperada para si próprio, se confrontará com os limites da sua aparentemente inabalável filosofia de vida.

“Eu penso: aqui estou deitado à sombra da meda de feno… O estreito espaço que ocupo é tão minúsculo em comparação com o restante espaço, onde eu não estou e onde nada tenho que fazer; e a porção de tempo que tenho para viver é tão insignificante comparada com a eternidade, em que eu não estive nem estarei… E neste átomo, neste ponto matemático, o sangue circula, o cérebro funciona, e também deseja qualquer coisa… Que absurdo! Que futilidades!”

Título: Pais e filhos

Autor: Ivan Turguéniev

Editora: Relógio D’Água

Ano: 2010 pais e filhos

O monte dos vendavais

«O monte dos vendavais» é um retrato cruel de uma relação tóxica que nos leva a questionar a fina fronteira que separa a paixão da obsessão. Numa sociedade em que o estatuto social determina o percurso de cada indivíduo, Heathcliff não tem nome, parentes, passado, nenhuma referência que permita definir a sua condição. Foi acolhido por um rico proprietário rural que o encontrou, ainda criança, a vaguear pelas ruas. Na sua casa encontra os meios necessários para sobreviver e tem mesmo acesso a alguma educação, mas não descobre um lar. Pertence sem pertencer, constantemente humilhado pelo filho do seu benfeitor, que nunca o deixa esquecer a sua suposta inferioridade. É neste meio hostil que encontra a sua alma gémea, Catherine, filha do dono da casa. Caprichosa e instável, obstinada e destemida, é a sua companheira de aventuras até a momento em que decide casar com um jovem do seu meio social. A vingança de Heathcliff irá perpetuar-se até à próxima geração, destruindo impiedosamente as vidas de todos os que de alguma forma se relacionam com o que considera ser a tragédia da sua vida, a perda do seu amor.

A linguagem é crua, apesar de bela, e não nos poupa aos pormenores mais desagradáveis e repugnantes. A violência física e psicológica é constante e afeta particularmente os mais vulneráveis, crianças, mulheres, doentes terminais. Não há barreiras morais que detenham a conduta de um homem que se alimenta do sofrimento alheio sem nunca se sentir plenamente saciado, pois aquilo que mais deseja está irremediavelmente perdido.

“He had an aversion to yielding so completly to his feelings, choosing rather to absent himself; and eating once in twenty-four hours seemed sufficient sustenance for him”.

Título: Wuthering Heights

Autor: Emily Bronte

Editora: Wordsworth Classics

Nota: Edição portuguesa da Presença

vendavais

O Primeiro Amor

Em «O primeiro amor», Ivan Turguénev regressa a um episódio marcante da sua própria adolescência, a paixão por uma vizinha um pouco mais velha, uma jovem nobre mas de escassos recursos que incentiva diversos pretendentes em caprichosos jogos de sedução. Nesta obra autobiográfica, a inocência platónica dos sentimentos do jovem apaixonado irá defrontar-se com uma descoberta perturbadora: a jovem é na realidade amante do seu pai, um homem casado que não admite divorciar-se nem assumir uma relação extraconjugal.

Mais conhecido pelo grande romance «Pais e filhos», que dá corpo ao niilismo da juventude russa da geração de 1860, Ivan Turguénev é um nome maior da literatura russa que exerceu considerável influência em outro grande escritor, Fiodor Dostoievsky. «O Primeiro amor» é uma obra bela e aparentemente simples, desprovida de conotações políticas mas plena de sentimento e emoção.

“Bruscamente, produziu-se aos meus olhos uma coisa inverosímil: o meu pai levantou o chicote, com que sacudia o pó da sua sobrecasaca, e ouviu-se uma chicotada brusca no braço nu de Zinaida. Foi a custo que me contive, que não soltei um grito; Zinaida estremeceu, olhou em silêncio para o meu pai e, levando lentamente o braço aos lábios, beijou o vermelhão que o chicote deixara”.

Título: O primeiro amor

Autor: Ivan Turguenév

Editora: Relógio d’Água

Ano: 2008

 

Amor

A conferência dos pássaros

Farid Ud-Din Attar figura como um dos maiores sufis de todos os tempos, apesar de pouco se saber a seu respeito. Nascido no Iraque no século XII, foi um grande viajante, místico, poeta e ervanário. Terá vivido mais de 100 anos, tendo supostamente perecido às mãos dos invasores mongóis.

«A conferência dos pássaros» é a sua obra maior. É uma alegoria profundamente espiritual com passagens de grande beleza que retrata a viagem de 30 pássaros, sob a liderança de uma Poupa, em busca de uma ave lendária, o Simurg, que representa Deus. Ao longo do percurso os pássaros enfrentam os terríveis desafios dos seus próprios receios e limitações, materializados em sete vales: o Vale da Busca, o Vale do Amor, o Vale da Compreensão, o Vale da Independência e do Alheamento, o Vale da Unidade Pura, o Vale do Espanto, o Vale da Pobreza e do Nada. Os que se superam chegam ao seu destino para descobrir a presença do divino em si próprios. A purificação interior produzida ao longo do percurso liberta a alma aprisionada, possibilitando a tão desejada união mística.

“-Diz-me, ´tu, que és famosa no mundo inteiro, que devo fazer para que me sinta contente nesta viagem? Se mo disseres, a minha mente sentir-se-á mais aliviada, e estarei disposto a deixar-me conduzir nesta empresa. Com efeito, a direção é necessária para que não nos deixemos tomar pela apreensão. E como só desejo aceitar a direção do mundo invisível, rejeito, com boas razões, a falsa direção das criaturas terrenas”.

Título: A conferência dos pássaros

Autor: Farid Ud-Din Attar

Editora: Marcador

Ano: 2013

Pássaros

Nós

«Nós» é uma utopia negra injustamente pouco divulgada que precedeu e alegadamente inspirou obras bastante mais celebrizadas sobre o mesmo tema, o «Admirável Mundo Novo» e «1984». Tem a particularidade de ter sido a primeira obra literária a ser banida pela censura soviética, em 1921, quando o regime dava os seus primeiros passos. Ievgueni Zamiatine foi um autor excecional pela sua coragem e perspicácia que se viu forçado a abandonar a URSS por se ter incompatibilizado fortemente com um sistema político que não admitia qualquer censura ou análise crítica. Defensor inicial da revolução, acabou por vir a questionar a sua estupidificante pressão para a conformidade e a repressão da criatividade artística que sufocava a literatura.

«Nós» apresenta-nos um futuro distópico, no qual um regime totalitário e tecnologicamente avançado anulou a individualidade. O seu funcionamento baseia-se numa premissa brutal: a liberdade e a felicidade são incompatíveis, pelo que a primeira deve ser sacrificada em defesa de uma existência supostamente harmoniosa, matematicamente controlada, em que o indivíduo se dilui no todo e renuncia ao seu sentido crítico. As palavras que o narrador D-503 regista nas suas notas retratam uma tentativa nem sempre bem sucedida para se adaptar a uma existência forçadamente normalizada e aflitivamente claustrofóbica. O duelo interior que o atormenta, alimentado por uma parceira rebelde, acaba por se revelar perigosamente na sua vivência e as consequências não se fazem esperar.

“É muito estranho não ser possível encontrar maneira de curar esta doença dos sonhos ou de os tornar racionais… ou mesmo úteis, porque não?”

Título: Nós

Autor: Ievgueni Zamiatine

Editora: Antígona

Ano: 1990

Nós2

 

Davam grandes passeios aos domingos

A força contagiante de poemas maravilhosos como a «Toada de Portalegre» ou o «Cântico Negro» reflete uma alma profunda que tem o dom inequívoco da palavra. São poemas que arrepiam pela sua intensidade feroz, hinos dos momentos mais determinantes das nossas vidas. José Régio é um nome maior da literatura portuguesa do século XX que se destacou pela sua versatilidade. Da poesia ao ensaio, passando pelo teatro e a ficção, navegou à vontade por diversos estilos literários, sem nunca perder o pé.

«Davam grandes passeios aos domingos» surge no Plano Nacional de Leitura como recomendação para o 9º ano de escolaridade. É uma pequena e deliciosa história que se lê de uma assentada só, tanto pela sua brevidade como pelo interesse que desperta. Rosa Maria é uma personagem cativante que instintivamente gera empatia. Afligida pela desventura de ser órfã e pobre num tempo em que a emancipação feminina ainda era uma miragem distante, ousa sonhar com horizontes mais longínquos do que aqueles que a sociedade lhe reservou. Acolhida por familiares abastados, está fadada a permanecer nas sombras enquanto discreta e apagada professora de lavores e piano da jovem estouvada da família. Mas Rosa Maria é uma pessoa sensível, com necessidade de estímulos intelectuais e emocionais que superam a sua posição social. Na sua ingenuidade, é levada a acreditar que a sua realização é possível, que pode transpor as firmes e intransigentes barreiras de uma sociedade fortemente hierarquizada para se tornar na pessoa que sonha ser. O leitor acompanha o seu devaneio até ao inevitável desfecho, o único possível numa sociedade que não tolera desvios.

“E o que mais a desesperava nas noites de insónia, quando o soão quase súbito se levantava, sacudia a repelões portas e janelas, depois se engolfava nos becos vizinhos, de redor da cadeia, com uivos cavos morrendo ao longe, – era ver como tinha em si grandes forças vivas, uma rara capacidade de amar, de se dar, de viver, e estupidamente não lhe permitia a vida expandi-las”.

Título: Davam grandes passeios aos domingos

Autor: José Régio

Editora: Unibolso

passeios

O Rochedo de Tanios

Vencedor do Prémio Goncourt em 1993, «O Rochedo de Tanios» transporta-nos a uma fascinante e exótica viagem ao Líbano do século XIX, onde a história e a ficção se entrelaçam nas desventuras de um personagem singular, Tanios, que graças a um espírito inquieto e questionador se tornará um estranho entre os seus. As peripécias do destino, aliadas à sua tendência natural para recusar as convenções sociais, levam-no a procurar outros caminhos e a olhar de fora para a sua própria sociedade. A clarividência que este descentramento lhe proporciona traduz-se num bem sedimentado espírito de justiça e misericórdia, o antídoto mais eficaz contra o ciclo de violência e vingança que empesta a sua terra natal.

Mais do que tudo, «O Rochedo de Tanios» é uma obra bela que proporciona o mais puro e simples prazer da leitura. Amin Maalouf transporta-nos nas suas mágicas e subtis palavras a um mundo distante que afinal está tão próximo do nosso. Como Tanios, o leitor olha para dentro e descortina os fundamentos que se escondem nos interstícios do supérfluo.

“Felicidade passageira? Todas elas o são; quer durem uma semana ou trinta anos, choramos as mesmas lágrimas quando chega o último dia, e daríamos a alma para poder chegar até ao dia seguinte”.

Título: O Rochedo de Tanios

Autor: Amin Maalouf

Editora: Difel

Tanios

O Jogador

Aleksey Ivanovich trabalha como tutor para uma família endividada que coloca as suas derradeiras esperanças de salvação financeira na morte de uma tia rica que se recusa a morrer. Apaixonado por uma jovem da família, é desafiado por ela a jogar no casino, uma prova de abnegação amorosa que não consegue recusar. A partir dali, os dados do seu futuro estão lançados.

«O jogador» é um retrato violento sobre o vício. A vida das personagens move-se ao ritmo da sua compulsão para jogar, as suas responsabilidades, afetos e interesses são relegados para segundo plano, nada mais interessa para além do jogo que tem sempre precedência em todas as escolhas e decisões. Ali se fazem e perdem fortunas, ali se navega entre o desespero e a euforia, pois quem ganha hoje perde amanhã. Esta realidade transcende as personagens e contagia o próprio autor, ele próprio viciado no jogo e sob grande pressão para terminar a obra, sob pena de perder os seus direitos de autor.

“Parece-me que Polina, até hoje, me tem olhado como aquela imperatriz antiga que se despia na presença do escravo, pois não o considerava um ser humano”.

Título: O jogador

Autor: Fiodor Dostoievski

Editora: Presença

Ano: 2001

Jogador