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Nós

«Nós» é uma utopia negra injustamente pouco divulgada que precedeu e alegadamente inspirou obras bastante mais celebrizadas sobre o mesmo tema, o «Admirável Mundo Novo» e «1984». Tem a particularidade de ter sido a primeira obra literária a ser banida pela censura soviética, em 1921, quando o regime dava os seus primeiros passos. Ievgueni Zamiatine foi um autor excecional pela sua coragem e perspicácia que se viu forçado a abandonar a URSS por se ter incompatibilizado fortemente com um sistema político que não admitia qualquer censura ou análise crítica. Defensor inicial da revolução, acabou por vir a questionar a sua estupidificante pressão para a conformidade e a repressão da criatividade artística que sufocava a literatura.

«Nós» apresenta-nos um futuro distópico, no qual um regime totalitário e tecnologicamente avançado anulou a individualidade. O seu funcionamento baseia-se numa premissa brutal: a liberdade e a felicidade são incompatíveis, pelo que a primeira deve ser sacrificada em defesa de uma existência supostamente harmoniosa, matematicamente controlada, em que o indivíduo se dilui no todo e renuncia ao seu sentido crítico. As palavras que o narrador D-503 regista nas suas notas retratam uma tentativa nem sempre bem sucedida para se adaptar a uma existência forçadamente normalizada e aflitivamente claustrofóbica. O duelo interior que o atormenta, alimentado por uma parceira rebelde, acaba por se revelar perigosamente na sua vivência e as consequências não se fazem esperar.

“É muito estranho não ser possível encontrar maneira de curar esta doença dos sonhos ou de os tornar racionais… ou mesmo úteis, porque não?”

Título: Nós

Autor: Ievgueni Zamiatine

Editora: Antígona

Ano: 1990

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O triunfo de César

A série Roma Sub-Rosa, de Steven Saylor, acompanha as aventuras de Gordiano, o descobridor, e conta já com 15 títulos. Gordiano é uma personagem cativante, um detetive moderno que investiga intrincados mistérios nos últimos tempos da República Romana e nos concede a sua visão de uma sociedade fascinante que esteve na origem direta daquela em que vivemos hoje. Casado com uma antiga escrava egípcia e pai de quatro filhos, três deles adotados, investiga casos complicados de inspiração real a pedido de clientes abastados, alguns deles célebres.

Personagens marcantes atravessam-se no seu caminho, como Cícero, Catilina, Pompeu, Marco António. Em «O Triunfo de César», Gordiano investiga uma possível conspiração contra Júlio César a pedido de Calpúrnia, sua esposa. Os meandros das ferozes intrigas políticas revelam-se fatais num momento determinante da história romana, quando o ambicioso Júlio César dá o golpe de misericórdia na república e estabelece as bases do que virá a ser o império romano. Um interessante enredo policial, leve e descomprometido, que nos permite conhecer um pouco melhor um momento determinante da nossa história.

“Em circunstâncias normais, uma respeitável figura pública como Cícero não se gabaria de a filha estar prestes a dar à luz sem estar casada. Mas as circunstâncias tinham deixado de ser normais; vivíamos num mundo em que Calpúrnia consultava um adivinho e Cícero se tinha casado com uma adolescente desenxabida”.

Título: O triunfo de César

Autor: Steven Saylor

Editora: Bertrand

Ano: 2008

césar

Davam grandes passeios aos domingos

A força contagiante de poemas maravilhosos como a «Toada de Portalegre» ou o «Cântico Negro» reflete uma alma profunda que tem o dom inequívoco da palavra. São poemas que arrepiam pela sua intensidade feroz, hinos dos momentos mais determinantes das nossas vidas. José Régio é um nome maior da literatura portuguesa do século XX que se destacou pela sua versatilidade. Da poesia ao ensaio, passando pelo teatro e a ficção, navegou à vontade por diversos estilos literários, sem nunca perder o pé.

«Davam grandes passeios aos domingos» surge no Plano Nacional de Leitura como recomendação para o 9º ano de escolaridade. É uma pequena e deliciosa história que se lê de uma assentada só, tanto pela sua brevidade como pelo interesse que desperta. Rosa Maria é uma personagem cativante que instintivamente gera empatia. Afligida pela desventura de ser órfã e pobre num tempo em que a emancipação feminina ainda era uma miragem distante, ousa sonhar com horizontes mais longínquos do que aqueles que a sociedade lhe reservou. Acolhida por familiares abastados, está fadada a permanecer nas sombras enquanto discreta e apagada professora de lavores e piano da jovem estouvada da família. Mas Rosa Maria é uma pessoa sensível, com necessidade de estímulos intelectuais e emocionais que superam a sua posição social. Na sua ingenuidade, é levada a acreditar que a sua realização é possível, que pode transpor as firmes e intransigentes barreiras de uma sociedade fortemente hierarquizada para se tornar na pessoa que sonha ser. O leitor acompanha o seu devaneio até ao inevitável desfecho, o único possível numa sociedade que não tolera desvios.

“E o que mais a desesperava nas noites de insónia, quando o soão quase súbito se levantava, sacudia a repelões portas e janelas, depois se engolfava nos becos vizinhos, de redor da cadeia, com uivos cavos morrendo ao longe, – era ver como tinha em si grandes forças vivas, uma rara capacidade de amar, de se dar, de viver, e estupidamente não lhe permitia a vida expandi-las”.

Título: Davam grandes passeios aos domingos

Autor: José Régio

Editora: Unibolso

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Um lago de trevas

Martin Urban cresceu num meio privilegiado. Oriundo de uma família de classe média alta, nunca teve que se preocupar com as questões prosaicas da sobrevivência diária. Trabalha na empresa do pai, reside num apartamento confortável e instalou-se comodamente numa existência banal, livre de desassossegos e preocupações. A sua paz é perturbada quando um amigo do passado, por quem nutre uma atração física intensa e recalcada, o desafia a jogar no totobola. O prémio inesperado desperta a sua veia altruísta e decide empregar o dinheiro na ajuda a pessoas carenciadas. Mas o distanciamento que sempre teve relativamente a qualquer carência económica traduz-se nalguma insensibilidade perante as verdadeiras necessidades e motivações daqueles que o rodeiam, tanto os contemplados como os excluídos. As reações são inesperadas e o desenlace será fatal.

Com «um lago de trevas», Ruth Rendell demonstra mais uma vez que a literatura policial não é necessariamente uma literatura de segunda categoria. O enredo é deliciosamente tortuoso. As personagens, amorais, sinuosas e desesperantes, caminham inconscientemente para o abismo, empurradas pelas suas próprias pulsões e necessidades, e o leitor, que conhece as motivações de cada uma, assiste impotente ao seu descalabro.

“Era uma rapariga simples, despreocupada, que não costumava desanimar por muito tempo. Tim relevara-lhe uma ocasião que uma das coisas que lhe agradavam nela consistia no facto de não ter moral nem a noção de culpa”.

Título: Um lago de trevas

Autor: Ruth Rendell

Editora: Edições 70

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Os cúmplices

Numa cidade pequena onde todos se conhecem, Lambert, um indivíduo respeitável, casado e dono de uma empresa de construção, tem uma relação extraconjugal com a secretária. Não será uma relação amorosa mas uma relação sexual, sedimentada apenas no desejo e não no conhecimento mútuo. Até aqui a história é banal, mas afasta-se do trivial quando o casal se envolve num ato sexual enquanto Lambert conduz, o que o leva a perder momentaneamente o controlo do carro. É o suficiente para invadir a faixa contrária, provocando o despiste de um autocarro que transporta perto de 50 crianças, que acaba por colidir com um muro e incendiar-se. No calor do momento, Lambert segue o seu primeiro instinto e continua o seu percurso como se nada fosse, não prestando qualquer auxílio aos sinistrados. Apenas uma criança sobrevive.

Nos dias seguintes a dimensão da tragédia domina a nação, atraindo à pequena terra jornalistas, investigadores, curiosos, toda uma multidão que se concentra no único propósito de discutir o acidente e de especular sobre quem o terá provocado. Lambert move-se entre os seus perseguidores, mantém os seus rituais diários, joga às cartas com os vizinhos, almoça com a esposa, discute pormenores laborais com os seus funcionários e clientes. Enquanto o cerco se fecha à sua volta vive numa situação de permanente transe, não devido ao sentimento de culpa mas por acreditar que a qualquer momento irá ser descoberto e detido. Toda a sua vida irá acabar, a sua liberdade, os seus bens, a sua posição no mundo. Na beira do precipício apercebe-se gradualmente da vacuidade da sua existência e desenvolve uma obsessão. O seu desejo pela secretária, agora sua cúmplice, domina-o. Esta criatura que permanece impávida e serena perante o acontecido, aparentemente alheia e indiferente a tudo e a todos, será certamente extraordinária, pelo que apenas ela o poderá compreender e libertar. Nela projeta todas as suas aspirações e frustrações, mas para alcançar o seu propósito terá que ultrapassar uma barreira que se revela intransponível, o que irá determinar o seu destino.

“Então, o universo afastava-se até se transformar numa espécie de nebulosa sem importância. Os objetos perdiam o peso, as pessoas não passavam de fantoches minúsculos ou grotescos, e tudo o que habitualmente era considerado de valor passava a ser uma coisa sem sentido. Subsistia apenas, num mundo encolhido, envolvente e cálido, benfazejo, a pulsação do sangue nas artérias, uma sinfonia de início vaga e difusa, que, pouco a pouco, se ia tornando mais precisa até, por fim, se concentrar no sexo”.

Título: Os cúmplices

Autor: Georges Simenon

Editora: Dom Quixote

Ano: 1989

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Wilt em parte incerta

Filho de um simpatizante nazi, Tom Sharpe, um dos expoentes máximos do humor britânico, utilizou os seus dotes literários em prole do combate ao racismo na África do Sul, país onde assistiu em primeira mão aos horrores da violência racial. O seu ativismo literário contra o apartheid valeu-lhe a prisão e a deportação para a sua Grã-Bretanha natal no início dos anos 60. Distante da contestação politica, em 1976 publica Wilt, novela humorística que introduz o seu personagem mais carismático, Henry Wilt, professor de literatura num colégio de artes e tecnologia que dá o nome a cinco novelas publicadas ao longo de quase 25 anos.

«Wilt em parte incerta» é a penúltima novela em que figura este personagem desafortunado e incompreendido que, como é hábito, se vê rodeado de indivíduos vulgares e desagradáveis que se envolvem nas tramas mais absurdas e disparatadas. A sua opressiva esposa parte para umas férias nos EUA com as filhas de ambos, as maquiavélicas e imparáveis quadrigémeas, deixando-o livre para cumprir o sonho antigo de divagar sem destino a pé pela Inglaterra profunda. Mas como tudo na vida de Wilt, o passeio vai ser tudo menos bucólico. As trapalhadas perseguem-no mesmo nos confins mais recônditos onde se pretende evadir, transfigurando esta novela numa paródia sem fim. Afinal, Tom Sharpe transformou o mau gosto numa forma de arte.

“Então, subitamente, o seu pé ficou preso na raiz de um abrolho e ele sentiu-se a cair de cabeça. Por um momento a sua mochila, presa num dos espinhos do abrolho, quase lhe amparou a queda. Mas Wilt continuou a cair, aterrou de cabeça na parte de trás da pick-up de Bert Addle e desmaiou. Era quinta-feira à noite”.

Título: Wilt em parte incerta

Autor: Tom Sharpe

Editora: Teorema

Ano: 2004

wilt

O Rochedo de Tanios

Vencedor do Prémio Goncourt em 1993, «O Rochedo de Tanios» transporta-nos a uma fascinante e exótica viagem ao Líbano do século XIX, onde a história e a ficção se entrelaçam nas desventuras de um personagem singular, Tanios, que graças a um espírito inquieto e questionador se tornará um estranho entre os seus. As peripécias do destino, aliadas à sua tendência natural para recusar as convenções sociais, levam-no a procurar outros caminhos e a olhar de fora para a sua própria sociedade. A clarividência que este descentramento lhe proporciona traduz-se num bem sedimentado espírito de justiça e misericórdia, o antídoto mais eficaz contra o ciclo de violência e vingança que empesta a sua terra natal.

Mais do que tudo, «O Rochedo de Tanios» é uma obra bela que proporciona o mais puro e simples prazer da leitura. Amin Maalouf transporta-nos nas suas mágicas e subtis palavras a um mundo distante que afinal está tão próximo do nosso. Como Tanios, o leitor olha para dentro e descortina os fundamentos que se escondem nos interstícios do supérfluo.

“Felicidade passageira? Todas elas o são; quer durem uma semana ou trinta anos, choramos as mesmas lágrimas quando chega o último dia, e daríamos a alma para poder chegar até ao dia seguinte”.

Título: O Rochedo de Tanios

Autor: Amin Maalouf

Editora: Difel

Tanios

O Jogador

Aleksey Ivanovich trabalha como tutor para uma família endividada que coloca as suas derradeiras esperanças de salvação financeira na morte de uma tia rica que se recusa a morrer. Apaixonado por uma jovem da família, é desafiado por ela a jogar no casino, uma prova de abnegação amorosa que não consegue recusar. A partir dali, os dados do seu futuro estão lançados.

«O jogador» é um retrato violento sobre o vício. A vida das personagens move-se ao ritmo da sua compulsão para jogar, as suas responsabilidades, afetos e interesses são relegados para segundo plano, nada mais interessa para além do jogo que tem sempre precedência em todas as escolhas e decisões. Ali se fazem e perdem fortunas, ali se navega entre o desespero e a euforia, pois quem ganha hoje perde amanhã. Esta realidade transcende as personagens e contagia o próprio autor, ele próprio viciado no jogo e sob grande pressão para terminar a obra, sob pena de perder os seus direitos de autor.

“Parece-me que Polina, até hoje, me tem olhado como aquela imperatriz antiga que se despia na presença do escravo, pois não o considerava um ser humano”.

Título: O jogador

Autor: Fiodor Dostoievski

Editora: Presença

Ano: 2001

Jogador

Margarita e o Mestre

«Margarita e o Mestre» é um livro maravilhoso. A sua inteligente sátira é um veículo eficaz para a crítica social mas o seu alcance não se esgota aí, dado que explora os meandros mais profundos da existência humana, nomeadamente o clássico dualismo entre o bem e o mal. A obra teve uma génese atribulada, o primeiro manuscrito acabou destruído pelo próprio autor que veio a falecer em 1940, antes da sua plena finalização. Foram publicadas diversas versões com base nos manuscritos disponíveis, algumas depois de sujeitas à censura, o que deu origem a inúmeras versões. Independentemente destas peripécias, constitui uma sátira deliciosa de qualidade indiscutível que merece figurar entre os melhores romances do século XX.

A história é complexa sem ser impenetrável e o humor cáustico de Bulgakov torna a leitura extremamente agradável. Idealmente, o leitor deverá deixar-se surpreender pelo enredo, sem conhecer à priori demasiados detalhes da obra. Basta saber que a ação decorre em dois momentos: nos anos 30, Moscovo recebe a visita do Diabo e do seu séquito, uma trupe caricata que atormenta sem piedade os surpreendidos moscovitas, que não conseguem encaixar estas personagens inauditas no seu ateísmo feroz. Com uma precisão cirúrgica, atacam as fraquezas do espírito humano, a ganância, a avidez, a cobardia, o ceticismo, a soberba intelectual, deixando à sua passagem um rasto de incredulidade e assombro perante a constatação de que tudo é possível, mesmo o impensável. Paralelamente, num tom realista e desprovido dos laivos do humor, assistimos ao desenrolar do julgamento de Jesus por um Pôncio Pilatos atormentado por enxaquecas e dilemas morais, que não consegue fugir ao inevitável desfecho, a fatídica execução que determinou o futuro da humanidade.

“A vida de Berlioz sempre decorrera de tal modo que não o preparara para fenómenos extraordinários. Empalidecendo ainda mais, arregalou os olhos e pensou, perturbado: «Isto não pode ser!…». Mas, infelizmente, podia ser e era”.

Título: Margarita e o Mestre

Autor: Mikhail Bulgakov

Editora: Contexto

Ano: 1991

Margarita

O olhar dos inocentes

Os livros de Camilla Lackberg apresentam uma regularidade agradável. Em cada obra acompanhamos os pormenores da vida pessoal das personagens principais, demoramo-nos nas vicissitudes das relações familiares na sociedade sueca contemporânea, a educação dos filhos, a vida sentimental, a lida doméstica, o dia-a-dia do casal, a difícil gestão de situações de luto. A talentosa escritora Erika Falk e o seu marido, o inspetor Patrick Hedstrom, constituem o núcleo em torno do qual as restantes personagens se movem, irmãos, pais, colegas, amigos. De livro para livro tornam-se cada vez mais familiares, é agradável segui-los, acompanhar a sua história, conhecer o seu destino. A componente doméstica é apimentada pela investigação de crimes passionais, com raízes num passado mais ou menos distante, que exploram os meandros mais negros da mente humana e concedem um elemento de suspense e mistério à narrativa.

«O olhar dos inocentes» segue à risca esta fórmula. Uma família desapareceu misteriosamente há mais de 40 anos da sua casa na ilha de Valo, deixando para trás o seu elemento mais jovem, uma bebé encontrada sozinha na residência vazia. A policia investigou o caso mais foi incapaz de encontrar uma explicação para o sucedido, que ao longo dos anos acabou por se transformar numa lenda local. A criança, agora adulta, irá despoletar novos crimes quando regressa à residência familiar, que pretende recuperar e transformar num hotel. Erika aproveita a oportunidade para voltar a investigar um caso que sempre a intrigou, perante a apreensão do seu marido, habituado às interferências da mulher, que frequentemente se revelam produtivas, mas nem sempre isentas de riscos.

“Gratidão era o que exigia. Desistira de toda a esperança de receber amor”.

Título: O olhar dos inocentes

Autor: Camilla Lackberg

Editora: D. Quixote

Ano: 2015

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