Guia de viagem pelo mundo dos livros

O Direito à Cidade

«O Direito à Cidade» é uma obra obrigatória escrita no calor dos finais da década de 60 por Henri Lefebvre, sociólogo e filósofo marxista. Esta obra revela-se fundamental na medida em que gerou um debate prolífico sobre a forma de entender e gerir a cidade que mantém toda a sua atualidade. Daqui têm surgido propostas divergentes – revolucionárias ou reformistas, marxistas ou anarquistas, todas elas ancoradas nas ideias originais desta obra seminal.

Em linhas gerais, a obra parte da análise dos efeitos da industrialização na sociedade urbana, entendida como um processo de desregulação que exige a quebra do sistema urbano pré-existente, produzindo assim um choque entre o urbano e as realidades industriais. A crise da cidade emerge da reconfiguração do sistema urbano em torno das exigências do processo de industrialização, que num primeiro momento desencadeia a «explosão» da cidade tradicional. Posteriormente, a sociedade urbana desenvolve-se sobre as ruínas da antiga cidade que já não é um mero recetáculo passivo da industrialização. Aqueles que detêm a informação, a cultura e o poder retêm a capacidade de decidir sobre o processo de urbanização através da exploração do trabalho implicado na produção industrial.

A classe operária sofre as consequências da explosão das antigas morfologias urbanas. A velha miséria do proletariado é atenuada e tende a desaparecer nos grandes países industriais, mas uma nova pobreza emerge, uma miséria do habitat que afeta todos os que foram expulsos dos centros para as periferias. Nessas condições adversas surgem os direitos que definem a civilização – o direito ao trabalho, à educação, à saúde, à habitação. Entre estes direitos emerge o direito à cidade, entendido enquanto direito a uma vida urbana traduzida no pleno uso de tempos e locais. Para a classe trabalhadora este direito tem um valor particular, mas representa igualmente os interesses gerais da civilização e os interesses particulares de todos os estratos sociais de pessoas preocupadas com estas questões.

“Não é um pensamento urbanístico que conduz as iniciativas dos organismos públicos e semipúblicos, mas simplesmente o projeto de fornecer o mais rapidamente possível e ao menor custo o maior número possível de habitações: Os novos bairros são marcados por um carácter funcional e abstrato: o conceito de habitat levado à sua forma mais pura pela burocracia do Estado”.

Direito Cidade

Título: O Direito à Cidade

Autor: Henri Lefebvre

Editora: Estúdio e Livraria Letra Livre

Ano: 2012

A Selva

Em «A Selva», tanto o cenário como as personagens que nele se movem são retratados com extrema intensidade. A floresta amazónica surge como entidade viva, com vontade própria, implacável nos seus desígnios, cruel e fascinante em igual medida. Os seringueiros que nela ousam penetrar em busca da preciosa borracha são absorvidos pela verde imensidão que os ultrapassa e transforma. Naquele clima hostil laboram em condições infra-humanas, explorados por intermediários, patrões e comerciantes, todos unidos na humilhação do seu semelhante em prole do lucro.

A força do retrato reside certamente na sua aderência à realidade. Através do personagem central, um jovem português que é forçado a emigrar por razões políticas, Ferreira de Castro recupera a sua própria experiência enquanto emigrante no Brasil para denunciar a injustiça social inerente às relações laborais exercidas em situação de profunda desigualdade. É uma injustiça universal, perfeitamente transponível para a experiência migratória no mundo atual. O português que serve de nosso guia neste mundo de extremos sofre e vê sofrer, à semelhança do imigrante que no Portugal contemporâneo encontra a selva nas nossas cidades. A caminhada dos deserdados através dos séculos continua.

“Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática, que é a selva amazónica, pelo muito que nela sofri nos primeiros anos da minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida. E devia-o, sobretudo, aos anónimos desbravadores, que viriam a ser meus companheiros, meus irmãos, gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extração da borracha entregava a sua fome, a sua liberdade e a sua existência. Devia-lhes este livro, que constitui um pequeno capítulo da obra que há-de registar a tremenda caminhada dos deserdados através dos séculos, em busca de pão e de justiça”.

Título: A Selva

selva

Autor: Ferreira de Castro

Editora: Guimarães Editores

Ano: anos 70

O Romance de Genji

Se os livros abrem horizontes e transportam o leitor a outros mundos, poucos o levam numa viagem tão longínqua como «O Romance de Genji», escrito por uma dama da corte japonesa do século X. Quem ousar descobrir esta obra singular encontrará um tempo e um lugar que dificilmente irá reconhecer. Tudo ali é estranho, as sensações, os valores morais, o conceito de belo, o estilo de vida, as relações sociais. Para entrar no espírito do livro o leitor é convidado a abandonar aquilo que é e em que acredita, como um antropólogo que analisa uma tribo remota tornando-se parte integrante dela, sem julgamentos nem preconceitos.

Quando atingir esse estado de desprendimento poderá então usufruir plenamente desta jornada extraordinária pelos inúmeros amores do belo e desejado Príncipe Genji, que não perdem o seu valor nesta multiplicidade, contrariando o conceito ocidental de monogamia. Cada objeto da sua paixão tem os seus atributos e particularidades, que não se esgotam mas complementam, enriquecendo a vida do ardente Príncipe. É no amor que ele existe e é pelo amor que se realiza enquanto elemento excecional de uma sociedade privilegiada, algo com que o leitor já poderá empatizar, pois os encantos da sedução são universais. Uma leitura essencial para quem gosta de se aventurar para fora de si próprio.

“O amor que Genji acreditava sentir por Asagao era tão arrebatador como fazia parecer. A razão principal para aquela paixão residia na atitude distante dela. Genji nunca esteve disposto  admitir uma derrota e a rejeição de Asagao punha-o fora e si”.

Genji

Título: O Romance de Genji

Autor: Murasaki Shikibu

Editora: Exodus

Ano: 2008

O último cabalista de Lisboa

Numa reconstituição histórica irrepreensível, Richard Zimler transporta-nos ao início do século XVI para dar conta de um acontecimento negro da nossa história, o massacre de cerca de 2000 cristãos-novos, perseguidos pelas ruas de Lisboa, despojados de todos os bens e dignidade, torturados com requintes de malvadez, queimados em Praça Pública. Como acontece frequentemente em tais casos, foram a ignorância e a superstição que presidiram à matança, neste caso com os frades como seu instrumento, ao acusarem as vítimas de serem responsáveis pela peste e pela fome.

É neste caos que se move a personagem principal, um jovem judeu que nos dá a sua perspetiva pessoal dos acontecimentos, ao mesmo tempo que procura localizar um valioso manuscrito desaparecido e desvendar a morte do tio, famoso cabalista que encontra assassinado na cave da sua casa pouco antes da tragédia que irá ceifar tantas vidas. Uma leitura recomendada não apenas pela importância dos factos que retrata, mas sobretudo pelo simples prazer da leitura proporcionada por um argumento inteligente e uma escrita agradável.

“Como descrever a primeira noite da Páscoa? As palavras e os rostos tranquilos? A alegria estonteante? A tristeza pelos que nos tinham deixado? Ocupámos os nossos lugares unidos pela aura comum dor preparativos. Meu tio, como sempre, era o nosso guia no ritual. Mesmo sendo a Páscoa uma festa que tem o centro na recordação, uma rememoração da história de como Deus retirou os judeus da escravidão, possui também uma essência secreta. No interior do corpo da Tora, encolhida como uma fénix no ovo, esconde-se a história da jornada espiritual que toos nós poemos fazer, da escravidão para a bem aventurança. A Haggada da Páscoa é um sino de ouro que ao repicar nos diz: «Lembra-te que a Terra Prometida está dentro de ti!»”

cabalista

Título: O último cabalista de Lisboa

Autor: Richard Zimler

Editora: Leya

Ano: 2010

Eu, Cláudio

Roma antiga marca uma presença fundamental na árvore genealógica da sociedade ocidental, a par da Grécia. É ali que encontramos as raízes da nossa civilização, a língua, a lei, a arquitetura, as infraestruturas, a organização do Estado. Os fundamentos do que somos hoje enquanto cidadãos firmaram-se naquele mundo longínquo e nem o obscurantismo da Idade Média os conseguiu anular. «Eu Cláudio» acompanha o percurso do mais improvável imperador da história de Roma. Portador de deficiências extremamente estigmatizadoras naquela sociedade implacável, foi menosprezado e votado ao esquecimento pelos seus cruéis familiares, o que lhe salvou a vida e levou a Imperador. Entalado entre os tristemente célebres Calígula e Nero, tem uma identidade muito própria que Robert Graves, consagrado escritor britânico, reconstrói de forma brilhante, numa escrita fluida e imaginativa.

«Eu Cláudio» acompanha esta culta e injustiçada personagem até se tornar imperador, enquanto «Cláudio o Deus» se centra no período do seu império. Ambos foram retratados pela BBC nos anos 70, numa interessante série com o mesmo título. Uma leitura essencial para quem quer conhecer melhor este período marcante da nossa história.

“Quanto a mim, dizia-me sempre: «Cláudio, tu não passas de um desgraçado, sem grande utilidade neste mundo, mas ao menos a tua vida não está em perigo»”.

Claudio

Título: Eu, Cláudio

Autor: Robert Graves

Editora: Bertrand Editora

Ano: 2012

Cidades Rebeldes

Nesta obra interessantíssima, David Harvey, eminente geógrafo marxista, entende o capitalismo enquanto um sistema predatório e monopolista que deve ser desafiado na cidade, plena de desigualdades mas igualmente de potencial revolucionário. O proletariado tradicional está obsoleto na sociedade contemporânea, pelo que o grito de revolta emerge em novos e dinâmicos grupos sociais que constituem uma força politica inovadora. Em parceria com as organizações de esquerda mais tradicionais, estes grupos heterogéneos que ultrapassam os meros interesses de classe serão capazes de se mobilizar em função de uma luta comum, constituindo um movimento anti-capitalista ao nível da cidade. Quando organizados em rede abarcando diversas cidades em diversos países, estarão prontos para desafiar o sistema capitalista como um todo. O ponto de partida para o processo revolucionário reside então na reinvenção e reorganização das cidades para a luta anti-capitalista, o que implica formas alternativas de urbanização, que permanece um meio para a absorção dos excedentes do capital e do trabalho num contexto altamente especulativo.

Assim se resumem, mas não se esgotam, as ideias principais desta obra ainda por traduzir em Portugal. Uma leitura interessante para além do universo académico, dado que tem exercido uma influencia considerável ao nível das entidades e cidadãos que se mostram preocupados com os efeitos mais nefastos do sistema capitalista. Convém ter presente a afiliação marxista do autor, o que justifica algum apego à hierarquia e à ação institucional.

“The party’s favored slogans of freedom and liberty to be guaranteed by private property rights, free markets, and free trade actually translate into the freedom to exploit the labour of others, to dispossess the assets of the common people at will, and to pillage the environment for individual or class benefit”.

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Título: Rebel Cities

Autor: David Harvey

Editora: Verso

Ano: 2012

Dora Bruder

Um anúncio publicado num jornal antigo é inadvertidamente descoberto pelo narrador. Revela um casal judeu que procura a sua filha adolescente desaparecida durante a ocupação nazi. Durante décadas tentará reconstituir os passos desta jovem que no desabrochar da vida viu o universo fechar-se implacavelmente à sua volta. Procurava sem dúvida evadir-se para um mundo real ou imaginado, daí as fugas sucessivas do internato e do pequeno quarto de hotel onde vivia com a família. Nunca o encontra. Esse mundo deixara de existir para os judeus parisienses de então. Os seus caminhos afunilam-se gradualmente até restar apenas um único destino possível, Auschwitz. É lá que por percursos diversos todos os elementos daquela reduzida e desamparada família irão desaguar, num derradeiro e trágico reencontro.

Tudo o que se disser sobre o holocausto nunca será suficiente para descrever aquele acontecimento tenebroso, um dos mais negros da história da humanidade. Patrick Modiano, prémio nobel da literatura em 2014, contribui de forma sublime para este esforço de reconstituição. Enquanto o narrador percorre as ruas do seu presente evoca o passado da ocupação, quando aquelas ruas, aquelas árvores, aqueles edifícios ou outros entretanto destruídos, testemunharam o horror do que o homem foi capaz de fazer ao homem.

“Conviria saber se estava bom tempo nesse 14 de dezembro, dia da fuga de Dora. Talvez fosse um domingo aprazível e ensolarado de inverno como muitos outros em que um sentimento de desafogo e eternidade nos invade – o sentimento ilusório de que o curso do tempo está suspenso e que basta deixarmo-nos escorregar por esta brecha para escapar ao tornilho que voltará a fechar-se sobre nós”.

Dora

Título: Dora Bruder

Autor: Patrick Modiano

Editora: Porto Editora

Ano: 2015

O Grande Manuscrito

«O Grande Manuscrito», da autoria do escritor sérvio Zoran Zivkovic, vencedor do World Fantasy Award, é uma agradável e descontraída leitura que conjuga os géneros policial e fantástico. Acompanha as aventuras de um inspetor da polícia bibliófilo em busca de uma escritora desaparecida de um apartamento vazio e fechado por dentro. O mistério adensa-se à medida que a história avança, com uma seita secreta e implacável em perseguição da sua última obra, a qual supostamente concede a imortalidade ao seu primeiro leitor. Os livros são os principais protagonistas deste intrincado enredo em que os enigmas inexplicáveis se vão somando até à apoteose final, quando tudo é finalmente desvendado num desfecho agradavelmente inesperado.

Adverte-se o potencial leitor de que esta obra é a sequela de uma outra, «O Último Livro», facto que infelizmente não consta da sua capa. É aconselhável ler as obras sequencialmente, pois estão de tal forma interligadas que se começa pelo «Grande Manuscrito», vai perder acontecimentos relevantes para a história.

“Já tinha decidido prosseguir quando, de repente, tive um mau pressentimento. Não foi provocado por nada no exterior. Nada perturbava aquela escuridão impenetrável, nem chegava qualquer som aos meus ouvidos. Mas, mesmo assim, tive a clara sensação de que já não estava sozinho naquele pequeno lanço de escada. Parecia que alguém corria escada abaixo, junto ao corrimão do outro lado”.

manuscito

Título: O Grande Manuscrito

Autor: Zoran Zivkovic

Editora: Cavalo de Ferro

Ano: 2015

Ressurreição

«Ressurreição» acompanha um nobre na sua busca por redenção face a um pecado cometido na juventude, a sedução de uma empregada que em resultado do sucedido acaba despedida e forçada a recorrer à prostituição. Anos mais tarde, reencontra-a ao ser convocado para jurado no seu julgamento por homicídio, do qual é injustamente acusada. Confrontado com as consequências trágicas do seu ato passado na vida daquela mulher, sofre uma revolução espiritual.

Esta obra tem a particularidade de ter sido o último e menos reconhecido romance de um dos grandes escritores de sempre, Lev Tolstoi. É interessante ver onde chegou em fim de vida um autor que na meia idade escreveu obras de referência da literatura universal como «Guerra e Paz» e «Anna Karenina».  Na velhice Tolstoi não é mais o mesmo, graças a um carácter reflexivo e observador que o levou a questionar, e a questionar-se, constantemente, livrando-o da feliz imutabilidade que caracteriza os espíritos menos inquietos. Este Tolstoi em fim de vida, e que certamente mais mudaria se mais vivesse, renega os seus grandes romances por não cumprirem a função que agora considera primordial – a consciencialização dos leitores.  Na sua perspetiva, o romance deve transportar quem o lê a um mundo ficcional à superfície, mas real no seu enquadramento, para que através da empatia criada com as personagens tome contacto com realidades e problemas sociais aos quais não deve ser alheio.

Esta perspetiva não agradou a leitores e críticos, que em vez do romance belo e profundo que as obras anteriores fariam antecipar, encontraram um texto que remete constantemente para reflexões de carácter moral, social e filosófico. Apesar da receção desfavorável, é um romance magnífico. As reflexões são intemporais, sempre tendo em conta o devido contexto, e revelam uma sensibilidade e capacidade de análise extraordinárias. O questionamento é sem dúvida incómodo, e no caso de Tolstoi levou-o a renegar a condição de nobre proprietário e  a abandonar a sua casa, família e bens, tendo vindo a falecer pouco depois numa estação de comboios, de pneumonia. A ausência de questionamento é bastante pior, pois desagua necessariamente na pobreza de espírito.

 “Todos nós que nos entregamos a uma atividade qualquer precisamos de considerá-la importante e razoável para podermos trabalhar. Portanto, seja qual for o nível em que estacione, o ser humano constrói imediatamente uma conceção da vida e nela insere a sua ocupação, que por instinto considera necessária e razoável. Imagina-se a maior parte das vezes que um ladrão, um traidor, um assassino ou uma prostituta se envergonham da profissão que exercem ou, pelo menos, que a consideram má, mas na realidade isso não sucede. Os homens a quem o destino ou os pecados colocaram em situação definida, por mais imoral que ela seja, arranjam maneira de conceber a vida em geral de forma a que a sua situação lhes apareça como legítima e admissível – e para conservarem esse modo de ver apoiam-se instintivamente nos que se encontram em idênticas condições, nos que concebem a vida com o mesmo critério e que ocupam também situações claras mas anormais. Admiramo-nos de ver ladrões jactarem-se da sua habilidade, prostitutas da sua corrupção e assassinos da sua insensibilidade, mas isso acontece porque estas espécies de indivíduos são restritas, porque se movem em círculos e atmosferas que não têm contacto com os nossos. Já não nos surpreende, por exemplo, ver homens ricos orgulharem-se da sua riqueza – muitas vezes conseguida à custa de roubo ou usurpação, – ou poderosos do seu poder, que não raro significa violência e crueldade. Não notamos a maneira como a conceção natural da vida é desvirtuada por esta gente, assim como o primitivo significado do bem e do mal, e não só o não notamos, como também não nos admiramos. E isto unicamente porque o número daqueles que partilham esta perversa conceção da existência é grande, e porque nos achamos compreendidos nesse número”.

Post parcialmente retirado do meu antigo blog: http://cam_as_i_am.blogs.sapo.pt/

Está disponível uma edição mais recente, de 2010, da Editorial Presença. A foto aqui apresentada não é a da edição da Editorial Minerva, que já é antiga e está em mau estado.

Ressurreição

Título: Ressurreição

Autor: Lev Tolstoi

Editora: Editorial Minerva

Ano: 1965

Mil novecentos e oitenta e quatro

Já muito se disse de «Mil novecentos e oitenta e quatro», a mais celebrada utopia negra, a par do «Admirável Mundo Novo», de Aldous Huxley. Mas um blog dedicado a livros, que ainda por cima tem a pretensão de apresentar boas propostas literárias, tem que correr o risco de ser redundante ao apresentar mais uma vez esta obra fantástica da autoria de George Orwell. O enredo é aparentemente simples: num futuro hipotético, um regime totalitário e personalista subjuga implacavelmente os seus cidadãos. Quatro ministérios – do Amor, da Verdade, da Abundância e da Paz; três classes sociais rigidamente delimitadas – superior, média e baixa; uma nova língua telegráfica e um líder omnipresente, definem o mundo redutor em que o personagem principal se move.

A sua função no esquema das coisas é emblemática: rever documentos históricos com o objetivo de adequar o passado às necessidades do presente, o que implica eliminar personalidades que não se adequam à visão do mundo imposta pelo regime. Eliminar não fisicamente, mas da memória coletiva: apagar registos e referências, anular para sempre a sua existência, da forma mais absoluta e irremediável. Neste clima claustrofóbico não há lugar para devaneios ideológicos ou sentimentais, como este incauto funcionário irá perceber. E, tal como ele, também o leitor ganha consciência das brutais implicações do totalitarismo, um fenómeno bem real e infelizmente recorrente na história da humanidade.

 “ Vulgarmente, as pessoas que incorriam no desagrado do Partido desapareciam, pura e simplesmente, nunca mais se ouvindo falar delas. Nunca restava o menor indício do sucedido. Nalguns casos, podiam nem ter morrido. Sem contar com os seus pais, Winston conhecera talvez umas trinta pessoas que em dado momento desapareceram”.

Título: Mil novecentos e oitenta e quatro

1984

Autor: George Orwell

Editora: Antígona

Ano: 1999