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A baleia

«A baleia», de Benji Davis, é um livro doce e belo que facilmente cativa os mais pequenos e os seus pais. Apresenta-nos Noé, um menino sensível que vive numa pequena casinha de madeira na praia, com o seu pai pescador. As ilustrações suaves de extraordinária qualidade transmitem na perfeição o ambiente simples mas acolhedor de uma família monoparental masculina e dos seus inúmeros gatos de todas as cores, que vive sem luxos para além daqueles que a natureza tem para oferecer. A ausência da mãe está subentendida, nunca é referida abertamente, é uma perda subtil que se intui numa leve melancolia que não choca nem magoa. Enquanto o pai trabalha, Noé fica sozinho em casa e o tempo passa-se em passeios na praia, com as conchas, o mar, a areia e os gatos por companhia. É num desses passeios que encontra uma baleia bebé encalhada na areia, que se apressa a salvar. Tem assim início uma bela amizade que só podia acabar bem. A necessária separação é aceite no final, quando a baleia regressa ao seu elemento, mas a proximidade relativa dos dois mundos paralelos permite o avistamento ao longe, mantendo acesa a chama do afecto.

Título: A baleia

Autor: Benji DaviesBaleia

Editora: Orfeu Mini

Ano: 2016

Idade recomendada: 2-8 anos

 

Stalker

«Stalker», o quinto livro de uma fantástica série policial nórdica, mantém a fórmula dos seus antecessores sem se tornar repetitivo nem previsível. Capítulos curtos carregados de adrenalina e que se lêem compulsivamente de coração nas mãos são novamente a característica mais marcante de uma leitura que não desilude os apreciadores do género.

Desta vez, o famoso hipnotista Erik Maria Bark e o implacável investigador finlandês Joona Lina unem esforços na perseguição de um indivíduo de identidade desconhecida que assassina as suas vítimas de forma brutal, logo após divulgar pequenos vídeos que captou das suas vidas privadas, filmados através da janela sem que elas se tivessem apercebido da sua presença.  A polícia assiste impotente aos filmes sem ter tempo de identificar a vítima a tempo de evitar a tragédia, o que leva a desesperada comissária Margot Silverman a solicitar o apoio dos pouco convencionais Erik e Joona, que pensam e agem sempre fora da caixa das convenções sociais e dos rígidos procedimentos da burocracia policial.  Os resultados são imprevisíveis e surpreendentes, mantendo o suspense na sua intensidade máxima até à apoteose final.

“Erik é arrancado ao sono por uma aragem que lhe passa no rosto. Alguém fala muito baixinho e depressa. Quando ele abre os olhos, a voz cala-se. A escuridão é quase impenetrável e ele demora alguns segundos a perceber onde está”.

Título: Stalker

Autor: Keplerstalker

Editora: Porto Editora

Ano: 2016

 

A cor da magia

É difícil conceber alguém com uma imaginação tão fértil como Terry Pratchett, que da sua criatividade delirante conseguiu extrair esta pérola da literatura fantástica, a primeira obra de uma extensa saga passada num mirabolante mundo imaginário povoado de criaturas extraordinárias, o Discworld. As obras deste autor têm virtudes que as distinguem da literatura do género. Não são apenas mais um elemento indistinto num tipo de literatura que se tornou moda; possuem uma originalidade própria que as torna únicas e impossíveis de replicar. A sua  genial ironia estabelece uma analogia deliciosa com as vicissitudes da existência humana, caricaturadas num contexto onde a imaginação não conhece limites.

Nesta primeira obra da saga, um feiticeiro fracassado acompanha um turista imprevidente numa viagem por um mundo hostil. Twoflower, o primeiro e único indivíduo a quem passou pela cabeça a surpreendente ideia de visitar terras distantes num mundo onde esse conceito é desconhecido, diverte-se a tirar fotografias a dragões enquanto estes o tentam devorar. Rincewind, o desgraçado feiticeiro a quem coube a ingrata tarefa de o acompanhar, procura desesperadamente sobreviver às situações mais inconcebíveis e improváveis, enquanto serve de involuntário cicerone ao seu alegre e inconsequente companheiro. É uma estimulante massagem para as imaginações menos convencionais. Acima de tudo, é uma leitura extremamente enriquecedora para adultos e jovens, que entretém ao mesmo tempo que transmite conceitos importantes e valores fundamentais.

“Twoflower tried to explain. Rincewind tried to understand”.

Título: A cor da magia

Autor: Terry Pratchettcolor of magic

Editora: Gollancz

Ano: 1988

Nota: edição portuguesa da Temas e Debates

A Estrela do Diabo

«A estrela do diabo» coloca Jo Nesbo alguns furos acima da generalidade dos seus congéneres nórdicos que se dedicam à escrita de policiais. As personagens são um pouco mais elaboradas e o enredo é consistente e fornece a dose certa de adrenalina, mas é o sarcasmo inteligente que marca a diferença, com algumas tiradas interessantes, bem escritas e oportunas a definirem o carácter de Harry Hole, o inspector atormentado que teima em caminhar na beira do precipício na companhia da sua inseparável garrafa.

A sua tendência auto destrutiva não o impede de perseguir eficazmente um inteligente serial-killer ao mesmo tempo que enfrenta um arqui-inimigo verdadeiramente detestável e irritantemente adulado por todos, que não lhe dá um minuto de tréguas. Pelo meio ainda tem tempo para ensaiar umas tiradas românticas, talvez a componente menos convincente do livro, por soar ligeiramente a cliché. No entanto, a impressão geral é bastante positiva. Quem aprecia este tipo de literatura certamente não ficará desiludido e corre mesmo o risco de se viciar nas desventuras deste detective pouco original, mas cativante.

“Para um alcoólico, a vida consistia entre estar-se bêbado e os intervalos entre estar-se bêbado. Qual dessas partes era a vida real era uma questão filosófica que ele nunca tivera tempo suficiente para examinar, já que, de qualquer maneira, a resposta não lhe possibilitaria uma vida melhor. Ou pior. Segundo a lei básica da vida de um alcoólico – A Grande Sede – tudo o que era bom, mesmo tudo, perder-se-ia, mais cedo ou mais tarde”.

Título: A estrela do diabo

Autor: Jo Nesbo

Editora: D. Quixote

A Estrela do Diabo

Jo Nesbo – A Estrela do Diabo

Ano: 2011

Pais e filhos

«Pais e filhos» é uma daquelas obras de qualidade rara e excepcional que facilmente se transformam no livro de uma vida. Os meandros mais profundos da alma humana fluem livremente em passagens de uma beleza extraordinária, que dá gosto ler e reler. É uma obra que nunca se esgota, quando chegamos ao fim regressamos naturalmente ao início, abrimos uma qualquer página ao acaso, procuramos uma passagem que deixou a sua marca e saboreamos a grandiosidade da obra maior de um grande autor.

O livro foca o choque de gerações, de perspetivas de vida que se transformam de forma constante mas ainda assim inesperada para quem vai ficando agarrado aos valores fundamentais de ontem, hoje tornados obsoletos. É um tema intemporal, que aqui aborda o confronto entre os liberais russos da década de 1830 e os seus filhos, adeptos do movimento niilista. Bazárov, um promissor jovem de indiscutível excelência intelectual, encara com superioridade condescendente e ligeiro enfado o mundo que o rodeia, enquanto inspira o seu discípulo Arkádi, menos radical e mais vulnerável às subtilezas das relações humanas. Mas o próprio Bazárov, de forma inesperada para si próprio, se confrontará com os limites da sua aparentemente inabalável filosofia de vida.

“Eu penso: aqui estou deitado à sombra da meda de feno… O estreito espaço que ocupo é tão minúsculo em comparação com o restante espaço, onde eu não estou e onde nada tenho que fazer; e a porção de tempo que tenho para viver é tão insignificante comparada com a eternidade, em que eu não estive nem estarei… E neste átomo, neste ponto matemático, o sangue circula, o cérebro funciona, e também deseja qualquer coisa… Que absurdo! Que futilidades!”

Título: Pais e filhos

Autor: Ivan Turguéniev

Editora: Relógio D’Água

Ano: 2010 pais e filhos

Segredos obscuros

Sebastian Bergman, psicólogo criminal antissocial e amoral, perseguido impecavelmente pelos traumas do luto e da dor, é a personagem central da série policial da autoria da dupla de argumentistas suecos, Michael Hjorth e Hans Rosenfeldt. «Segredos obscuros» inaugura a série com a investigação do homicídio macabro de um jovem de 16 anos que frequentava uma escola privada de grande reputação e prestígio. Caberá à equipa de investigação liderada pelo eficiente Torkel e assessorada pelo irrascível Bergman deslindar os segredos que se escondem por detrás de uma fachada de moralidade aparentemente inquestionável.

«Segredos obscuros» não desilude o apreciador de policiais nórdicos. Não sendo uma obra fabulosa de grandes aspirações literárias, cumpre na perfeição os requisitos do género em que se insere. O enredo é cativante e coerente e a escrita tem qualidade suficiente para produzir uma boa impressão no leitor mais exigente, que não se deixa convencer facilmente por reproduções de qualidade duvidosa.

“Sebastian Bergman era melhor do que aquilo. Mais do que qualquer outra pessoa, ele conhecia o significado dos sonhos; mais do que qualquer outra pessoa, tinha de conseguir elevar-se acima desses febris resquícios do passado”.

Título: Segredos obscuros

Autores: Michael Hjorth e Hans Rosenfeldt

Editora: Suma

Ano: 2015segredos

O monte dos vendavais

«O monte dos vendavais» é um retrato cruel de uma relação tóxica que nos leva a questionar a fina fronteira que separa a paixão da obsessão. Numa sociedade em que o estatuto social determina o percurso de cada indivíduo, Heathcliff não tem nome, parentes, passado, nenhuma referência que permita definir a sua condição. Foi acolhido por um rico proprietário rural que o encontrou, ainda criança, a vaguear pelas ruas. Na sua casa encontra os meios necessários para sobreviver e tem mesmo acesso a alguma educação, mas não descobre um lar. Pertence sem pertencer, constantemente humilhado pelo filho do seu benfeitor, que nunca o deixa esquecer a sua suposta inferioridade. É neste meio hostil que encontra a sua alma gémea, Catherine, filha do dono da casa. Caprichosa e instável, obstinada e destemida, é a sua companheira de aventuras até a momento em que decide casar com um jovem do seu meio social. A vingança de Heathcliff irá perpetuar-se até à próxima geração, destruindo impiedosamente as vidas de todos os que de alguma forma se relacionam com o que considera ser a tragédia da sua vida, a perda do seu amor.

A linguagem é crua, apesar de bela, e não nos poupa aos pormenores mais desagradáveis e repugnantes. A violência física e psicológica é constante e afeta particularmente os mais vulneráveis, crianças, mulheres, doentes terminais. Não há barreiras morais que detenham a conduta de um homem que se alimenta do sofrimento alheio sem nunca se sentir plenamente saciado, pois aquilo que mais deseja está irremediavelmente perdido.

“He had an aversion to yielding so completly to his feelings, choosing rather to absent himself; and eating once in twenty-four hours seemed sufficient sustenance for him”.

Título: Wuthering Heights

Autor: Emily Bronte

Editora: Wordsworth Classics

Nota: Edição portuguesa da Presença

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O Primeiro Amor

Em «O primeiro amor», Ivan Turguénev regressa a um episódio marcante da sua própria adolescência, a paixão por uma vizinha um pouco mais velha, uma jovem nobre mas de escassos recursos que incentiva diversos pretendentes em caprichosos jogos de sedução. Nesta obra autobiográfica, a inocência platónica dos sentimentos do jovem apaixonado irá defrontar-se com uma descoberta perturbadora: a jovem é na realidade amante do seu pai, um homem casado que não admite divorciar-se nem assumir uma relação extraconjugal.

Mais conhecido pelo grande romance «Pais e filhos», que dá corpo ao niilismo da juventude russa da geração de 1860, Ivan Turguénev é um nome maior da literatura russa que exerceu considerável influência em outro grande escritor, Fiodor Dostoievsky. «O Primeiro amor» é uma obra bela e aparentemente simples, desprovida de conotações políticas mas plena de sentimento e emoção.

“Bruscamente, produziu-se aos meus olhos uma coisa inverosímil: o meu pai levantou o chicote, com que sacudia o pó da sua sobrecasaca, e ouviu-se uma chicotada brusca no braço nu de Zinaida. Foi a custo que me contive, que não soltei um grito; Zinaida estremeceu, olhou em silêncio para o meu pai e, levando lentamente o braço aos lábios, beijou o vermelhão que o chicote deixara”.

Título: O primeiro amor

Autor: Ivan Turguenév

Editora: Relógio d’Água

Ano: 2008

 

Amor

Um morto a mais em Resurrection Row

Anne Perry é uma escritora bastante produtiva que se dedica essencialmente à literatura policial de época. A série «Thomas Pitt», iniciada em 1979, foi o seu primeiro empreendimento e conta já com 30 títulos. A ação decorre no final da era vitoriana e cada livro acompanha a investigação de um crime pelo perspicaz inspetor Thomas Pitt, um homem competente de origens modestas que casou acima da sua classe num meio extremamente hierarquizado. Esta situação invulgar permite-lhe recorrer ao apoio da sua incansável esposa Charlotte, uma mulher inteligente e empreendedora que nos bastidores das classes mais abastadas recolhe subtilmente informação dificilmente acessível a um mero policial. Para além da trama policial, invariavelmente bem engendrada, o leitor encontra em cada livro um retrato pormenorizado e fiel de uma sociedade extremamente moralista, desigual e estratificada, na qual as diferentes classes sociais coexistem sem verdadeiramente interagir. A brutalidade da indigência elevada ao seu máximo expoente, numa sociedade pobre em direitos humanos e mecanismos de proteção social, choca ainda mais o leitor quando confrontada com o luxo extravagante dos privilegiados, que nem por isso estão imunes à corrupção, ganância, inveja e ciúme, motivações que frequentemente se escondem por detrás dos homicídios investigados.

«Um morto em Resurrection Row» é o quarto título da série e apresenta um intrincado e fascinante mistério. O cadáver de um lorde, recentemente falecido e devidamente sepultado, teima em aparecer nos locais mais estranhos, sem que se perceba a motivação de quem executa o ato macabro de desenterrar e expor um cadáver. Caberá ao perplexo inspetor Pitt deslindar discretamente o enigma, sem ferir a suscetibilidade de famílias proeminentes que não admitem qualquer intrusão na sua privacidade.

“Já ouvira falar de profanação de sepulturas, de roubo de cadáveres. Agora, porém, aperceba-se de que aquele homem extraordinário pensava que talvez fosse pessoal, deliberadamente dirigido contra Augustus… ou até contra ela!”

Título: Um morto a mais em Resurrection Row

Autor: Anne Perry

Editora: Gótica

Ano: 2005

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A conferência dos pássaros

Farid Ud-Din Attar figura como um dos maiores sufis de todos os tempos, apesar de pouco se saber a seu respeito. Nascido no Iraque no século XII, foi um grande viajante, místico, poeta e ervanário. Terá vivido mais de 100 anos, tendo supostamente perecido às mãos dos invasores mongóis.

«A conferência dos pássaros» é a sua obra maior. É uma alegoria profundamente espiritual com passagens de grande beleza que retrata a viagem de 30 pássaros, sob a liderança de uma Poupa, em busca de uma ave lendária, o Simurg, que representa Deus. Ao longo do percurso os pássaros enfrentam os terríveis desafios dos seus próprios receios e limitações, materializados em sete vales: o Vale da Busca, o Vale do Amor, o Vale da Compreensão, o Vale da Independência e do Alheamento, o Vale da Unidade Pura, o Vale do Espanto, o Vale da Pobreza e do Nada. Os que se superam chegam ao seu destino para descobrir a presença do divino em si próprios. A purificação interior produzida ao longo do percurso liberta a alma aprisionada, possibilitando a tão desejada união mística.

“-Diz-me, ´tu, que és famosa no mundo inteiro, que devo fazer para que me sinta contente nesta viagem? Se mo disseres, a minha mente sentir-se-á mais aliviada, e estarei disposto a deixar-me conduzir nesta empresa. Com efeito, a direção é necessária para que não nos deixemos tomar pela apreensão. E como só desejo aceitar a direção do mundo invisível, rejeito, com boas razões, a falsa direção das criaturas terrenas”.

Título: A conferência dos pássaros

Autor: Farid Ud-Din Attar

Editora: Marcador

Ano: 2013

Pássaros