Autor - meiapalavrablog

A sangue frio

«A sangue frio» relata um crime verídico ocorrido no final da década de 50 nos EUA: um casal e os seus filhos, pessoas respeitadas na comunidade, foram brutalmente assassinados na sua casa durante um assalto. Truman Capote investigou o caso em profundidade com base em observação direta, relatos oficiais e entrevistas a residentes, investigadores e aos próprios criminosos. Para além de descrever pormenorizadamente as personagens envolvidas e o contexto em que se desenrolou o crime, Capote desvenda as complexas motivações psicológicas subjacentes a um ato totalmente desnecessário e desproporcionado, cometido por uma dupla de assaltantes que, embora tivessem já um passado de criminalidade, nunca haviam praticado um ato de tal violência.

Apesar de persistir alguma polémica quanto à veracidade de alguns elementos do livro, não deixa de ser um trabalho de reportagem muito interessante que revela uma intensa pesquisa e explora eficazmente as personalidades dos criminosos, um dos quais vem a revelar uma sensibilidade surpreendente e aparentemente incompatível com a brutalidade dos seus atos.

“- Sabes o que estou a pensar? – disse Perry. – Acho que devemos ter qualquer anormalidade, nós os dois, para fazermos aquilo que fizemos.

– O que queres dizer?

– O que fizemos lá…”

sangue frio

Título: A sangue frio

Autor: Truman Capote

Editora: Círculo de Leitores

Eichmann em Jerusalém – reportagem sobre a banalidade do mal

No início dos anos 60, o criminoso de guerra nazi Adolf Eichmann foi julgado em Israel e condenado à morte por enforcamento. Hanna Arendt, filósofa política de origem judaica, assistiu ao julgamento e elaborou uma série de artigos para o «The New Yorker» que resultaram nesta obra.

Se há livro cuja leitura devesse ser obrigatória, é este. É uma reflexão muito séria, porventura a mais lúcida jamais escrita, sobre a maior tragédia da história da humanidade, o holocausto. Explica racionalmente os fatores que estiveram na sua origem e chega a uma descoberta que tem tanto de surpreendente como de inquietante. Os holocaustos deste mundo, qualquer que seja a sua escala, não são fruto das ações de psicopatas, mas sim de pessoas consideradas normais, que quando colocadas no contexto de um sistema social doentio se demitem de exercer a sua responsabilidade pessoal para a delegarem na figura de autoridade que lhes ordena que destruam os seus semelhantes.

“Para desgraça sua, ninguém acreditou nele. O procurador não acreditou, porque essa não era a sua função. O advogado de defesa não lhe prestou atenção porque, ao contrário de Eichmann, não parecia ter o mínimo interesse por problemas de consciência. E os juízes não acreditaram porque eram demasiado bondosos e talvez também demasiado conscientes daquilo que eram os fundamentos essenciais da profissão que exerciam para admitirem que uma pessoa vulgar, “normal”, nem fraca de espírito, nem doutrinada, nem cínica, pudesse ser totalmente incapaz de distinguir o bem do mal. Preferiram concluir a partir de algumas mentiras esporádicas, que o réu era um mentiroso. E assim escapou-lhes o maior desafio moral e, porventura, jurídico de todo este processo. O entendimento dos juízes assentava na suposição de que o réu, como qualquer pessoa “normal”, teria, forçosamente, tido consciência da natureza criminosa dos seus atos. Eichmann era de facto, normal, no sentido em que não era uma “exceção no seio do regime nazi”. Contudo dada a especificidade do terceiro Reich só as “exceções” poderiam reagir “normalmente”. Esta simples verdade criava aos juízes um dilema que não podiam nem resolver nem ignorar”.

Eichmann

Título: Eichmann em Jerusalém – reportagem sobre a banalidade do mal

Autor: Hannah Arendt

Editora: Tenacitas

Ano: 2003

Roma e Império

É possível caraterizar esta longa obra em duas partes com uma pequena frase: o melhor dos romances históricos para o leitor exigente que aprecia o género. Com as suas duas obras «Roma» e «Império», a segunda a sequela da primeira, Steven Saylor embarca num ambicioso relato da história de Roma antiga desde os seus mitos fundadores até aos tempos áureos do império. As fontes históricas para este período tão importante da nossa civilização nem sempre estão disponíveis de forma satisfatória, seja em quantidade seja em qualidade, pelo que a imaginação do autor cobre as falhas de forma coerente e eficaz, sem deixar pontas soltas.

Apesar da sua grande dimensão (cada livro ultrapassa as 600 páginas), a leitura é fácil e fluida, pois a escrita é bastante acessível e despretensiosa, e a narrativa está repleta de acontecimentos emocionantes que cativam o leitor. É uma forma muito agradável de ficar a conhecer melhor um período histórico tão importante, que aqui nos é revelado na perspetiva das diversas gerações de uma família romana proeminente, que convive com imperadores, generais, senadores, filósofos e outras figuras determinantes para a génese da civilização ocidental.

“A própria Cleópatra não tinha mais de vinte e cinco anos. Parecia mais velha na estátua que se encontrava no templo, pensou Lúcio; e com as vestes reais que usava no dia em que ele a conhecera também. Neste dia, envergava um vestido simples, de linho, em mangas, preso na cintura com uma faixa debruada a ouro. O cabelo, que costumava usar preso no alto da cabeça, caía-lhe hoje sobre os ombros, contornando-lhe a face. Não trazia o diadema: Ainda era cedo, e a rainha ainda não se tinha ataviado para receber visitas formais”.

Roma

Império

Título: Roma e Império

Autor: Steven Saylor

Editora: Bertrand

Ano: 2008 e 2011

Sentença em Pedra

Obra emblemática de uma grande senhora do crime, «Sentença em Pedra» é um triller psicológico genial que se lê compulsivamente da primeira à última página, apesar de Ruth Rendell revelar o desfecho logo no início da obra: uma família vai ser assassinada pela sua governanta. Contrariamente ao que sucede com o policial tradicional, não é a curiosidade sobre o final que prende o leitor, mas sim a forma como os acontecimentos se sucedem até àquele momento fatídico.

A família é feliz, aparentemente perfeita. Viveu sempre num mundo benevolente, isento de maldade. Todos os seus elementos são ricos, cultos, bonitos, bem integrados na comunidade onde os vizinhos os respeitam. Ironicamente, é essa inocência complacente que vai ditar a sua morte. Quando confrontados com a maldade, não a reconhecem. Confundem o isolamento da nova governanta com timidez, a sua frieza com reserva, a sua compulsividade com dedicação. E assim trazem uma psicopata para o seu seio, provocam-na com a sua boa-vontade inconsciente, despertam o monstro que se alberga naquele coração de pedra. Quando a inquietação finalmente surge, já é tarde de mais.

“Não houve piedade que a movesse, nem remorso. Não pensou em amor, alegria, paz, descanso, esperança, vida, pó, cinzas, desperdício, necessidade, ruína, loucura e morte, que tinha assassinado o amor e uma vida feliz, arruinado a esperança, desperdiçado força intelectual, acabado com a alegria, porque ela mal sabia o que estas coisas são. Não viu que tinha deixado cadáveres gritando por sepultura. Pensou que era uma pena aquela carpete tão bonita ter ficado naquela porcaria e ficou contente por nenhuma gota de sangue lhe ter tocado”.

sentença

Título: Sentença em Pedra

Autor: Ruth Rendell

Editora: Gradiva

As noites das mil e uma noites

Naguib Mahfuz, prémio nobel da literatura em 1988 e um dos melhores escritores árabes do século XX, propõe uma sequela das incontornáveis «Mil e Uma Noites» numa obra que ele próprio considera do mais importante que escreveu em toda a sua vida. A história é aparentemente simples. Depois de ouvir as histórias de Xerazade, o Sultão dá-se por vencido e casa-se com ela. No entanto, este gesto inesperado não representa uma mudança genuína na sua forma de ser, que se mantém inclemente e desprovida de empatia. Coloca-se então a questão de saber como ressuscitar a humanidade nesta alma intransigente e cruel.

Mahfuz propõe uma sábia solução. Transporta-nos a um mundo alegórico e fantástico onde o ser humano se despe de todos os artifícios e contempla a sua alma nua. É aqui que a verdadeira transformação se torna possível, a transformação que apenas um bom contador de histórias pode proporcionar àqueles que o escutam com uma mente aberta.

“Uma prova do receio da verdade é que não facilita a ninguém um caminho até ela nem priva ninguém da esperança de a alcançar. Deixa as pessoas a cavalgarem pelos desertos da perplexidade e a afogarem-se nos mares da dúvida. Quem acredita que a alcançou é porque se separou dela, e quem acredita que se separou dela foi porque perdeu o seu caminho. Não se pode chegar a ela sem fugir dela, é ineludível”.

Noites

Título: As noites das mil e uma noites

Autor: Naguib Mahfuz

Editora: Difel

Ano: 1998

O Direito à Cidade

«O Direito à Cidade» é uma obra obrigatória escrita no calor dos finais da década de 60 por Henri Lefebvre, sociólogo e filósofo marxista. Esta obra revela-se fundamental na medida em que gerou um debate prolífico sobre a forma de entender e gerir a cidade que mantém toda a sua atualidade. Daqui têm surgido propostas divergentes – revolucionárias ou reformistas, marxistas ou anarquistas, todas elas ancoradas nas ideias originais desta obra seminal.

Em linhas gerais, a obra parte da análise dos efeitos da industrialização na sociedade urbana, entendida como um processo de desregulação que exige a quebra do sistema urbano pré-existente, produzindo assim um choque entre o urbano e as realidades industriais. A crise da cidade emerge da reconfiguração do sistema urbano em torno das exigências do processo de industrialização, que num primeiro momento desencadeia a «explosão» da cidade tradicional. Posteriormente, a sociedade urbana desenvolve-se sobre as ruínas da antiga cidade que já não é um mero recetáculo passivo da industrialização. Aqueles que detêm a informação, a cultura e o poder retêm a capacidade de decidir sobre o processo de urbanização através da exploração do trabalho implicado na produção industrial.

A classe operária sofre as consequências da explosão das antigas morfologias urbanas. A velha miséria do proletariado é atenuada e tende a desaparecer nos grandes países industriais, mas uma nova pobreza emerge, uma miséria do habitat que afeta todos os que foram expulsos dos centros para as periferias. Nessas condições adversas surgem os direitos que definem a civilização – o direito ao trabalho, à educação, à saúde, à habitação. Entre estes direitos emerge o direito à cidade, entendido enquanto direito a uma vida urbana traduzida no pleno uso de tempos e locais. Para a classe trabalhadora este direito tem um valor particular, mas representa igualmente os interesses gerais da civilização e os interesses particulares de todos os estratos sociais de pessoas preocupadas com estas questões.

“Não é um pensamento urbanístico que conduz as iniciativas dos organismos públicos e semipúblicos, mas simplesmente o projeto de fornecer o mais rapidamente possível e ao menor custo o maior número possível de habitações: Os novos bairros são marcados por um carácter funcional e abstrato: o conceito de habitat levado à sua forma mais pura pela burocracia do Estado”.

Direito Cidade

Título: O Direito à Cidade

Autor: Henri Lefebvre

Editora: Estúdio e Livraria Letra Livre

Ano: 2012

A Selva

Em «A Selva», tanto o cenário como as personagens que nele se movem são retratados com extrema intensidade. A floresta amazónica surge como entidade viva, com vontade própria, implacável nos seus desígnios, cruel e fascinante em igual medida. Os seringueiros que nela ousam penetrar em busca da preciosa borracha são absorvidos pela verde imensidão que os ultrapassa e transforma. Naquele clima hostil laboram em condições infra-humanas, explorados por intermediários, patrões e comerciantes, todos unidos na humilhação do seu semelhante em prole do lucro.

A força do retrato reside certamente na sua aderência à realidade. Através do personagem central, um jovem português que é forçado a emigrar por razões políticas, Ferreira de Castro recupera a sua própria experiência enquanto emigrante no Brasil para denunciar a injustiça social inerente às relações laborais exercidas em situação de profunda desigualdade. É uma injustiça universal, perfeitamente transponível para a experiência migratória no mundo atual. O português que serve de nosso guia neste mundo de extremos sofre e vê sofrer, à semelhança do imigrante que no Portugal contemporâneo encontra a selva nas nossas cidades. A caminhada dos deserdados através dos séculos continua.

“Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática, que é a selva amazónica, pelo muito que nela sofri nos primeiros anos da minha adolescência e pela coragem que me deu para o resto da vida. E devia-o, sobretudo, aos anónimos desbravadores, que viriam a ser meus companheiros, meus irmãos, gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crónica definitiva, que à extração da borracha entregava a sua fome, a sua liberdade e a sua existência. Devia-lhes este livro, que constitui um pequeno capítulo da obra que há-de registar a tremenda caminhada dos deserdados através dos séculos, em busca de pão e de justiça”.

Título: A Selva

selva

Autor: Ferreira de Castro

Editora: Guimarães Editores

Ano: anos 70

O Romance de Genji

Se os livros abrem horizontes e transportam o leitor a outros mundos, poucos o levam numa viagem tão longínqua como «O Romance de Genji», escrito por uma dama da corte japonesa do século X. Quem ousar descobrir esta obra singular encontrará um tempo e um lugar que dificilmente irá reconhecer. Tudo ali é estranho, as sensações, os valores morais, o conceito de belo, o estilo de vida, as relações sociais. Para entrar no espírito do livro o leitor é convidado a abandonar aquilo que é e em que acredita, como um antropólogo que analisa uma tribo remota tornando-se parte integrante dela, sem julgamentos nem preconceitos.

Quando atingir esse estado de desprendimento poderá então usufruir plenamente desta jornada extraordinária pelos inúmeros amores do belo e desejado Príncipe Genji, que não perdem o seu valor nesta multiplicidade, contrariando o conceito ocidental de monogamia. Cada objeto da sua paixão tem os seus atributos e particularidades, que não se esgotam mas complementam, enriquecendo a vida do ardente Príncipe. É no amor que ele existe e é pelo amor que se realiza enquanto elemento excecional de uma sociedade privilegiada, algo com que o leitor já poderá empatizar, pois os encantos da sedução são universais. Uma leitura essencial para quem gosta de se aventurar para fora de si próprio.

“O amor que Genji acreditava sentir por Asagao era tão arrebatador como fazia parecer. A razão principal para aquela paixão residia na atitude distante dela. Genji nunca esteve disposto  admitir uma derrota e a rejeição de Asagao punha-o fora e si”.

Genji

Título: O Romance de Genji

Autor: Murasaki Shikibu

Editora: Exodus

Ano: 2008

O último cabalista de Lisboa

Numa reconstituição histórica irrepreensível, Richard Zimler transporta-nos ao início do século XVI para dar conta de um acontecimento negro da nossa história, o massacre de cerca de 2000 cristãos-novos, perseguidos pelas ruas de Lisboa, despojados de todos os bens e dignidade, torturados com requintes de malvadez, queimados em Praça Pública. Como acontece frequentemente em tais casos, foram a ignorância e a superstição que presidiram à matança, neste caso com os frades como seu instrumento, ao acusarem as vítimas de serem responsáveis pela peste e pela fome.

É neste caos que se move a personagem principal, um jovem judeu que nos dá a sua perspetiva pessoal dos acontecimentos, ao mesmo tempo que procura localizar um valioso manuscrito desaparecido e desvendar a morte do tio, famoso cabalista que encontra assassinado na cave da sua casa pouco antes da tragédia que irá ceifar tantas vidas. Uma leitura recomendada não apenas pela importância dos factos que retrata, mas sobretudo pelo simples prazer da leitura proporcionada por um argumento inteligente e uma escrita agradável.

“Como descrever a primeira noite da Páscoa? As palavras e os rostos tranquilos? A alegria estonteante? A tristeza pelos que nos tinham deixado? Ocupámos os nossos lugares unidos pela aura comum dor preparativos. Meu tio, como sempre, era o nosso guia no ritual. Mesmo sendo a Páscoa uma festa que tem o centro na recordação, uma rememoração da história de como Deus retirou os judeus da escravidão, possui também uma essência secreta. No interior do corpo da Tora, encolhida como uma fénix no ovo, esconde-se a história da jornada espiritual que toos nós poemos fazer, da escravidão para a bem aventurança. A Haggada da Páscoa é um sino de ouro que ao repicar nos diz: «Lembra-te que a Terra Prometida está dentro de ti!»”

cabalista

Título: O último cabalista de Lisboa

Autor: Richard Zimler

Editora: Leya

Ano: 2010

Eu, Cláudio

Roma antiga marca uma presença fundamental na árvore genealógica da sociedade ocidental, a par da Grécia. É ali que encontramos as raízes da nossa civilização, a língua, a lei, a arquitetura, as infraestruturas, a organização do Estado. Os fundamentos do que somos hoje enquanto cidadãos firmaram-se naquele mundo longínquo e nem o obscurantismo da Idade Média os conseguiu anular. «Eu Cláudio» acompanha o percurso do mais improvável imperador da história de Roma. Portador de deficiências extremamente estigmatizadoras naquela sociedade implacável, foi menosprezado e votado ao esquecimento pelos seus cruéis familiares, o que lhe salvou a vida e levou a Imperador. Entalado entre os tristemente célebres Calígula e Nero, tem uma identidade muito própria que Robert Graves, consagrado escritor britânico, reconstrói de forma brilhante, numa escrita fluida e imaginativa.

«Eu Cláudio» acompanha esta culta e injustiçada personagem até se tornar imperador, enquanto «Cláudio o Deus» se centra no período do seu império. Ambos foram retratados pela BBC nos anos 70, numa interessante série com o mesmo título. Uma leitura essencial para quem quer conhecer melhor este período marcante da nossa história.

“Quanto a mim, dizia-me sempre: «Cláudio, tu não passas de um desgraçado, sem grande utilidade neste mundo, mas ao menos a tua vida não está em perigo»”.

Claudio

Título: Eu, Cláudio

Autor: Robert Graves

Editora: Bertrand Editora

Ano: 2012